João Duarte possuia um quarteirão quase inteiro de casas no bairro da Torre do Tombo, em Moçâmedes. Casas de traça colonial portuguesa, de grande valor em termos de património arquitéctónico, cultural e histórico para a cidade do Namibe, que, lamentavelmente, apresentam hoje em dia um avançado estado de degradação. E quanto a cidade teria a ganhar com a recuperação deste património
que ainda hoje faz a delícia de visitantes, sobretudo os estrangeiros, que não resistem em o fotografar...
Nasci e cresci numa casa mesmo ao lado da casa onde viveu a familia João Duarte, e embora tenham passado já 50 longos anos, tenho na memória recordações nítidas deste loca, que me foi familiar, e deste conjunto habitacional, que conheci por fora e por dentro, como às minhas mãos.
Tenho bem presente os momentos de alegres brincadeiras que partilhei com alguns dos filhos desta numerosa familia, sobretudo aqueles que mais se aproximavam da minha idade,
a Zita Lurdes, o Zé, o Helder... Os outros filhos de D. Micas e de João Duarte, os mais velhos, eram o Jinho, o Norberto, o Quim, e o Mandinho, e os mais novos, a Guida, o Mário e o Eduardo. O Norberto faleceu era ainda muito novo, cheguei a conhecê-lo. O Mandinho também faleceu relativamente jovem.
Recordo as bonecas de pano com as quais a Zita brincava, sentada na escadaria da entrada do casarão familiar. Eram confeccionadas pela D. Micas, que lhes colocava longas tranças feitas de lã amarela, e as vestia com vestidinhos de chita estampada com flores colorida. E as bonecas feitas de papel de lustro colorido que a Zita guardava religiosamente no interior de uma caixinha de lata, munidas dos respectivos vestidinhos, sainhas, meias, sapatos, chapéus, etc. Naquele tempo não havia à venda a variedade de brinquedos que hoje em dia apresenta o mercado, e as nossas mães jogavam mãos às suas habilidades manuais para proporcionarem este tipo de brinquedo às suas filhas; as bonecas de pano com tranças de lã...
Ainda sinto o cheiro da água de colónia que a D. Micas, ela própria fazia, colocando num frasco uma porção de perfume ao qual adiciona água, talvez para suavizar o efeito sobre a pele. Era com este líquido, cuja mistura tomava a côr branca, que perfumava os filhos caçulas, a Guida, o Mário e o Eduardo após o banho diário.
Lembro-me dos "apetitosos" odores que emanavam daquela cozinha, onde a azáfama diária não parava, desde manhã cedo até à hora de dormir, e onde D. Micas, mulher-mãe, esposa, dona de casa, educadora de seus filhos, embora ajudada por seus empregados, não declinava suas grandes atribuições em mãos alheias.
Recordo os "jogos de esconde esconde" e outras brincadeiras mais, que nós, garotada endiabrada, fazíamos por baixo do assoalho daquela casa, construído sobre uma caixa de ar, onde um dia encontrámos um saco com moedas antigas. Essa casa que surgia aos meus olhos criança como um enorme casarão
Moçâmedes era uma
terra santa em termos de segurança. Lembro-me que o meu pai deixava à
porta da nossa casa a carrinha de caixa aberta que possuia, uma Ford,
com a chave na ignição. E que a porta da nossa casa ficava sempre
aberta, excepto à noite. E à noite fechada apenas no trinco. No Verão,
as janelas da rua também ficavam abertas de par em par. Como o mundo
mudou neste aspecto. Hoje em qualquer cidade proliferam gradeamentos e
não faltam policiamentos.
Naquele tempo brincávamos no meio da rua, em frente das nossas casas. A rua era o campo onde se jogava futebol, era o trajecto
que se percorria quando se brincava às escondidas, era o palco onde se
representava, era terreiro onde se jogava à macaca e aos queimados.
Rapazes e raparigas. Meninos e meninas. Tanto juntos como separados. Não
havia casa da vizinhança que não lhes conhecessemos os recantos. Para brincar às escondidas devassávamos as imediações, saltando de um lado para o outro da rua, entre a casa do João Duarte e a casa do velho Reis e da Ritinha Seixal onde sobre terraços de quartos
feitos com bordão punham a secar rodelas de batata doce, as célebres
"macocas", que faziam a delicia da garotada. Do grupo de rapazes
faziam parte o Zézinho e o Helder Duarte, o Amilcar, o Monteiro (Necas),
o Juju, o Aires Domingos e o irmão Vitor, o Lolita Lisboa (às vezes), e
quando se tratava de futebol também o Zequinha Esteves e o Travão
alinhavam na brincadeira.
Brincava-se muito naquele tempo. Escola da parte da manhã, brincadeira o
resto do dia. Nada a ver com escolas-prisão dos tempos de hoje. Nossas
mães estavam em casa, não trabalhavam, não havia essa coisa que hoje
chamam os "deveres de casa", terminadas as aulas brincava-se até à hora do jantar, mais propriamente, até à hora da
chegada a casa de João Duarte, na sua limousine cinzenta,
Dodge, por volta das 20 horas. Era o limite, a hora do descanso do "guerreiro", a nossa hora do recolhimento a casa.
Uma coisa que João Duarte não dispensava, era o "encontro dos
velhotes" até à hora do jantar, no "Quiosque do Faustino". Alí
encontravam-se, diariamente, ao fim da tarde, para animada cavaqueira, o velho Cabral, de fato e
lacinho; o velho Ringue, de origem boer, tradutor de profissão e
ex-cultivador de tabaco (Bibala); o velho Pimentel Teixeira acabadinho
de chegar na sua bicicleta, vindo da Farmácia do Sindicaro da Pesca,
depois Grémio, onde trabalhava; o sempre bem disposto Virgílio Gomes (do
Armazém) ou Virgilio Russo, também conhecido carinhosamente, por
"Virgílio aldrabão", devido às mirabolantes anedotas (*) que sempre
tinha para contar, e outros mais que a memória e o tempo não permitem
recordar. E outros mais que a memória, traiçoeira, não deixa lembrar...
João Duarte foi, pois, um exemplo da vontade, persistência e determinação de mais um português do Norte, simples emigrante, que um dia resolveu partir para Angola, ali fixar-se para sempre, nessa terra onde viveu, casou, teve filhos, teve netos, labutou, gerou riqueza, proporcionou trabalho e investiu o fruto desse trabalho, sem se preocupar em amealhar para si e para os seus algures em algum Banco na Europa. Hoje tende-se em Angola a confundir "colono" e "colonialista". Pior ainda, o "colono", simples emigrante, foi elevado a "bode expiatório" de todos os males do colonialismo. A perspectiva não irá mudar enquanto imperarem preconceitos que impedem uma visão mais clara e realista da história da ex-colónia. Uma coisa foi um projecto europeu de exploração económica e dominação
política que aconteceu, dirigido por homens do poder encostados a homens de dinheiro, a partir das Metrópoles, os Oligarcas, outra coisa são os "colonos", geralmente grupos humanos constituido de gente pobre e trabalhadora, dos quais os "colonialistas" se serviram, tal como se serviram dos povos colonizados, para levarem por diante os seus intentos sobre um território afastado do seu lugar de origem. Por vezes há "colonialismo" sem haver "colonização", aí os metropolitanos não se fixam, apenas desempenham cargos de funcionalismo, sempre a pensar no regresso. Quando há "colonização", como aconteceu em Angola, a camada de metropolitanos fixa-se com carácter permanente na terra, onde lhes nascem os filhos, e onde, como refere Luiz Chinguar, procuram o “ultimo refúgio na velhice, edificam uma casa com jardim à frente e horta e pomar no quintal..." Em Angola onde houve "colonização" e houve"colonialismo". Era fácil distingui-los. As leis não eram dirigidas para favorecer os colonos mas para favorecer colonialistas que delas beneficiavam. Ou seja, eram emanadas para benefício de uma oligarquia de Lisboa colada ao poder (detentora das
grandes fazendas e de inúmeros privilégios e monopólios), que vivia em um
execrável absentismo mas com um total poder de decisão, e que desde sempre desprezou a vontade dos colonos. Mas foi sobre estes que infelizmente recaiu o ónus
das injustiças praticadas, enquanto as mais valias económicas e financeiras deste mau proceder ficavam
para os oligarcas, que nunca deram a cara. Até na independência ficaram
“assobiando para o lado”, acrescenta Chinguar. Angola teria beneficiado imenso, se em vez de
"descolonização" tivesse havido um "descolonialismo"! Este,sim, acabava com o
colonialismo, principal causador do atraso cultural, económico e,
principalmente, social. Depois de 1974, em Portugal,
não se procura a verdade, ou melhor, as verdades. Apenas o que é
politicamente correcto. Oculta-se o passado através de uma imprensa
controlada e ignorante, as consagradas “verdades” definitivas e
oficiais. Aconselha uma consulta a : http://psitasideo.blogspot.pt/2009/06/os-ossos-da-colonizacao-1.html.
Símbolos positivos do fim do período colonial, estas pessoas, de que João Duarte é um exemplo, as que ali ganharam e alí investiram a totalidade do seu ganho, acabaram por ser a mais prejudicadas, porque Portugal, a potência colonizadora, que teve o direito de colonizar (de acordo com o direito internacional), não cumpriu o dever de descolonizar no tempo próprio. Rumando no sentido contrário da processo histórico, sem a mínima consideração pelos naturais e pelos europeus que alí labutavam e alí investiam o resultado do seu trabalho, optou por uma guerra sem fim à vista, que não podia ter outro resultado. E na hora da verdade, o Portugal de Abril foi obrigado a debandar pura e simplesmente do território, deixando aquelas gentes entregues a uma guerra fraticida, e oferecendo aos portugueses e aos seus descendentes, ali nascidos, e a uns poucos africanos vinculados ao Estado, como descargo de consciência e única alternativa, uma «ponte área» montada à pressa, e sem retorno. A juntar-se a isto, o "favor" de se poder trocar 5 mil escudos angolanos, por cinco mil escudos portugueses.
Estas pessoas regressaram às suas terras com as mãos mais vazias que nunca. Os que possuiam poupanças de uma vida depositadas em Bancos do dito Ultramar, tudo perderam. Sim, porque para nada valiam. Os outros, os tais Oligarcas, os grande empresários domiciliados na Metrópole, os protegidos do sistema, aqueles que desde sempre se serviram de Angola apenas para «sacar», e investir na Europa, sem vínculo afectivo que os ligasse àquela terra, nada perderam, porque tinham o seu pecúlio a bom recato!
Esperemos ao menos que a História consiga um dia separar o trigo do joio e finalmente fazer justiça àqueles que deram a Angola o melhor de si mesmos, e ainda hoje continuam escarnecidos e vilipendiados!
As lições da vida têm sido uma grande Escola para os angolanos! Sairam os portugueses, a guerra entre os movimentos de libertação arrastou-se até
2002, e tornou-se mais feroz que nunca. Acabada a guerra, foram-se os colonialismos, foram-se as ideologias, instalou-se o discurso do neo-liberalismo. Aliás hoje em dia, um pouco por toda a parte, assistimos, impotentes, ao surgimento de um tipo de Estado que já não controla a sua própria estrutura política, desprestigiado por agentes económicos sem ética, sem respeito pelos mais elementares direitos dos outros. Ali, aqui, acolá, e por toda a parte.
Angola é um país de futuro, apregoa-se. Oxalá um dia o seu povo possa vir, também a beneficiar das suas riquezas.
Algumas fotos de familia:
Aqui podemos ver a D. Micas (Maria da Conceição Guedes Duarte), esposa de João Duarte, e os seus 8 irmãos, alguns dos quais trabalhavam na empresa da família Duarte. São: Isaura Guedes da Silva, Joaquim Guedes da Silva, João Guedes da Silva, António Guedes da Silva, Manuel Guedes da Silva, Armando Guedes da Silva, Delfina Guedes Lisboa e Carlos Guedes da Silva.
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Aqui podemos ver o José Guedes Duarte (Zézinho para os familiares e amigos) e Teresa Banha enquanto namorados, no Parque Infantil de Moçâmedes. José Duarte é um dos filhos de João Duarte e D. Micas. Os miúdos são o Ricardo (Kady), a irmã, Lena Duarte, e o Fernando Duarte que Deus Tem. Ao fundo o Colégio das Doroteias. São todos filhos do casal Maria Helena Ramos Duarte e João Carlos Guedes Duarte (Jinho), portanto netos de João Duarte. Foto de finais doa anos 1950.
Acrescentarei ainda a
esta postagem algumas fotos deste ramo alargado da familia Duarte, "roubadas" ao Ricardo (Kady), neto de João
Duarte:
João Carlos Guedes Duarte (pai), Maria Helena Ramos Duarte (mãe), com alguns dos seus 7 filhos: Lopo, São e Jorge e Lena, Mário, Fernando e Ricardo/Kady.
Familiares e amogos na ponte da pescaria da Praia Amélia. Da esq para a dt: Jorge Duarte, Kady Duarte, Lelito?, Marito Saavedra, Fernando Duarte, Lenita, uma prima de Sesimbra, Marito Duarte (o caçula), Lena Duarte (de óculos) menina de Porto Alexandre de Maria Cândida (Sial). Ao fundo duas traineiras e a ponta do Canjeque. Na foto a seguir: Lopo, São, Jorge. Embaixo; Lena, Márito, Fernando e Kady Duarte.
Interessante é o perfil que Kady traça de seu pai, o João Carlos Guedes Duarte, conhecido Jinho, que tinha enraizado em
si o «bichinho» dos aviões e das corridas de automóvel... Ei-lo:
"O meu pai João Carlos Guedes Duarte, também conhecido
em Moçâmedes por "Jinho" começou a voar em 1956 e teve licença para
pilotar aviões - o popular "brevet" - em 1958. A sua madrinha de vôo foi
a Celísia Calão, uma senhora lindíssima, aliás lugar comum em
Moçâmedes, pessoa que tive o prazer de reencontrar em Portugal
continental, pois deu-se a feliz coincidência de a Celísia vir a ser
colega da minha mulher na CGD em Lisboa. Foi a Celísia que deu o banho
de baptismo de "brevet" ao meu pai com o tradicional balde de água pela
cabeça abaixo.
"O meu pai começou por voar em Moçâmedes, com os aviões do
Aero Clube local, tendo participado com boas classificações em diversos
"ralis aéreos". Mais tarde acabou por adquirir um Tiger Mouth àquele
Aero Clube com o qual fez inúmeras acrobacias aéreas e outras peripécias
- desde aterrar na praia a colocar o passageiro a vomitar (diga-se
situação um pouco incómoda até para o piloto) porque o Tiger "4 asas"
não tinha carlinga e o passageiro viajava, por norma, no lugar da
frente. Lembro-me do meu pai me contar que, de vez em quando perdia
ferramenta e haveres, deixados por descuido dentro do cockpit, quando se
punha a fazer "loopings" e "tonneaux".
João Carlos Guedes Duarte com Fragoso (aviador), o irmão Armando Guedes Duarte (Mandinho) e o Chefe do Posto Matos
João Carlos Guedes Duarte junto a um Auster da FAV com Fragoso, colega piloto.
"...Quem me lê conhece bem o meu pai e sabe do que ele era capaz de fazer de um avião. Quando cheguei a Portugal (em 1976) vivi por breves meses em Vidago e aí encontrei alguns ditos "retornados" que me contaram peripécias do meu pai com o Tiger que eram desconhecidas na família. Um desses senhores contou-me que o meu pai ia buscá-lo à Baía dos Tigres só para ele ir jogar futebol a Moçâmedes ao domingo e ele (futebolista) perdia mais peso na viagem (tais eram as acrobacias) do que durante todo o jogo!!! Na Baía dos Tigres os aviões aterravam na avenida principal e recolhiam-se ao pé da igreja, onde eram amarrados tal eram as ventanias e tempestades de areia. Como se sabe, os aviões levantam sempre contra o vento e nos dias de vento forte punham-se dois cipaios de cada lado das asas a segurar as mesmas enquanto o avião não tomava aceleração para não levantar antes do tempo!!!Esse Tiger Mouth (prateado) CR-LCN foi , mais tarde destruído em acidente tido pelo meu tio Mandinho (Armando Guedes Duarte) também ele piloto - fez um "cavalo de pau" e partiu a hélice e deslocou os apoios do motor. Vou "postar" aqui as poucas fotos que tenho de Moçâmedes (são só duas) mas prometo, para futuro breve divulgar aqui alguns filmes em 8mm, ou fotos deles extraídas, onde se podem apreciar os ralis aéreos com aviões do Aero Clube de Moçâmedes de outras cidades angolanas e alguma acrobacia aérea no Tiger Mouth.» ....

O «Tiger Mouth» de João Carlos Guedes Duarte com os filhos Lopo e Jorge
"...De 1957 a 1961 e nesse tempo de "vacas gordas" o meu pai andava nas corridas de automóveis e nas "brincadeiras" com avionetas do Aero Clube de Moçâmedes e até chegou a ser proprietário de uma pequena avioneta - um Tiger Moth de "4 asas". Há cá muita gente de Angola, que se lembrarão desses áureos tempos. »
O casal João Carlos Guedes Duarte e Maria Helena Ramos Duarte
Alguns elementos da familia Duarte, junto da sua moradia em Porto Alexandre, no dia 10 de Janeiro de 1976, já após a independência, momentos antes de abandonarem aquela cidade
Fica aqui mais uma recordação de gentes e factos ocorridos um dia, algures na nossa terra.
MNJardim
Fotos/fonte - Blog Kadypress: clicar
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Aero Clube de Moçâmedes
AQUI