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10 dezembro 2020

SOBRE O DIA DA CHEGADA DOS PRIMEIROS BRANCOS A MOÇÂMEDES .

SOBRE O DIA DA CHEGADA DOS PRIMEIROS BRANCOS A MOÇÂMEDES  

(*) Requerimento

Diz a História que o jovem António Joaquim Guimarães Júnior foi o fundador, em 1839, da 1ª feitoria, a par do recentemente formado "Estabelecimento Prisional de Mossâmedes", onde não existiam relações comerciais com os gentios do sertão do sul, de modo a tornar efectiva a presença de Portugal. Aliás, a iniciativa teria partido do próprio Guimarães, como ele mesmo afirma. Tinha apenas 20 anos quando fez chegar à Secretaria do Ultramar um requerimento e obteve os meios necessários para a realização de tal empresa, em que se oferecia para montar em Moçâmedes, no sul de Angola, uma indústria de charqueação (carne salgada e seca) e de cortumes, além do comércio usual daquela província, isto é, a troca de cera, marfim, gomma copal, urzella & c., "por fazendas, missanga, e géneros do agrado daqueles povos de vida pastoril, que possuíam grande quantidade de gados vaccum, e ovelhum."  A esta 1ª feitoria outras se seguiriam,  e Moçâmedes onde o clima ameno começava  a  ser divulgado, e queee nada tinha a ver com a doentia e pantanosa Benguela, ceifeira de vidas de europeus,  inaugurava assim um novo paradigma  colonial que se pretendia de fixação de gentes da metrópole e  de desenvolimento económico, num  tempo em que o tráfico de escravos para o Brasil e Américas tinha  sido abolido na lei em 1836, (1) mas mantinha-se na clandestinidade, sendo definitivamente abolido apenas em 1869.

Considerava-se então que convinha desenvolver um ramo novo da indústria, porquanto Guimarães Júnior encontraria consumidores para os seus produtos nas embarcações do Estado provenientes da Ásia,  que em Moçâmedes podiam abastecer-se, tanto mais que a Ilha de St.a Helena, onde estacionavam baleeiros vindos da América e dedicados à pesca da baleia nos mares da Baía dos Tigres, distava apenas oito dias de viagem.
 
O progresso da colónia exigia a presença de colonos no território parciaomente ocupado, e que até então estavam ausentes, mas também que os autóctones não mais fossem traficados para o Brasil e Américas, mas levados a trabalhar , "a civilizar-se pelo trabalho", dirigido para obras de fomento e desenvolvimento económico da colónia (abertura de vias de comunicação, estradas,  caminho de ferro,  pontes, etc etc), e  também para atrair possíveis investidores de capitais.
 
Fazendo uma retropectiva  da situação, o tráfico de escravos para o Brasil e Américas, o negócio tinha sido abolido na lei de 12 de Dezembro de 1836, já no qudro do liberalismo triunfante em Portugal,  e havia passado à clandestinidade. Por essa altura tinham entrado em acção brigadas marítimas que patrulham a costa, na pereguição dos embarques de escravos, Pedro Alexandrino da Cunha fora escolhido pelo Governador e Vice Almirante Manuel António de Noronha para chefe da estação naval de Luanda,  competindo-lhe vigiar os embarques entre Molembo e Luanda.  Acto contínuo, em 1839 Pedro Alexandrino assume a missão de explorar a costa ao sul de Benguela,  como geógrafo e roteirista,  e fez-se acompanhar  do António Joaquim Guimarães Júnior que na qualidade de comerciante  ia estudar a probabilidade instalar na costa a sul de Benguela feitorias comerciais, tendo aportado em 22 de Setembro de 1839, na velha "Manga das Areias", Baia dos Tigres, derivando em seguida para Moçâmedes.  Do mesmo empreendimento fez parte o tenente Gregório José Garcia, nomeado comandante do novo estabelecimento da Baía de Moçâmedes,  o Forte de S. Fernando, para onde deveria  dirigir-se, por terra, e  juntar-se a Alexandrino da Cunha e a Guimarães, conforme "Memória Sobre a Exploração da Costa Sul de Benguela na África Ocidental e Fundação do Primeiro Estabelecimento Comercial na Baía de Mossâmedes", da autoria de Guimarães publicada em Lisboa no ano de 1842.   Garcia depressa iria incompatibizar-se com Guimarães, cuja feitoria acabaria incendiada  e completamente destruída. Porquê?  
 
O jovem investidor conta-nos no seu livro atrás citado,  que  caira de imediato no agrado dos sobas da região, Quipola e Giraúlo, agrado esse que cairia no desagrado do Garcia.  Qual a razão?  Concorrência? A resposta, seguindo a pista de Guimarães, teria que levar a novas pequisas.
 
Guimarães ficou conhecido como o "Gato com Botas", assim ficou baptizado  também, o local do seu estabelecimento em Moçâmedes.  Porquê?   A história do Gato de Botas mostra que a astúcia, a inteligência e a capacidade de encontrar soluções criativas pode ser mais valiosa do que possuir bens materiais. Além disso, também destaca a importância da confiança e da lealdade, já que o jovem confiou no seu gato e este o ajudou a alcançar a felicidade e o sucesso. Terá alguma relação com o papel deempenhado por Guimarães para cativar o "sobas" à sua chegada  e estabelecimento em Mossâmedes?  O jovem comerciante,  no livro que deixou para a posteridade, aponta para as ambições pessoais do tenente Gregório José Garcia, o comandante do novo estabelecimento. A verdade é que à chegada Guimarães foi bem recepcionado pelo Soba  da região que logo se prontificou a mandar a sua gente erguer uma espécie de telheiro de ramos onde expôs as fazendas que trouxera consigo com objecto de troca por géneros como  marfim , cera, gado, urzella, etc., tendo solicitado consentimento para erguer uma casa a fim de armazenar outras coisas  que pertendia conduzir para ali. Para melhor percepção, trancrevo a seguir o relato efectuado por Guimarães na obra referenciada:  
                                                ...............
 
Segue, no respeito da escrita da época, parte do relato da entrada da corveta "Isabel Maria" na baía de Moçâmedes, onde tiveram que se confrontar com um "banco" de areia que atrapalhava a navegação. A parte da Memória aqui descrita, em nada foi alterada, para que não se perca uma "gota" deste impressionante relato que nos mostra aquilo que era a Moçâmedes nesse tempo: nada, absolutamente nada, apenas um areal desértico junto ao mar, banhado por um rio seco a maior parte do ano, o rio Bero, mas suficiente para que a vida ali se tornasse possível... Isto, porque retinha água no solo e no sub-solo, quando na época das chuvas as água das enxurradas invadirem as margens, e levava  consigo fertilizantes naturais para novas sementeiras, gerando uma espécie de microclima temperado que mais tarde faria das "Hortas de Mossâmedes" um verdadeiros oásis.
 
"...Foi então que em menos de quarenta e oito horas avistámos a bahia de Mossâmedes, duvidando porém se seria ella, posto que todos os indícios, que a distancia nos deixava perceber, combinassem com a ideia que eu fazia d'este logar, e como erão já cinco horas da tarde, o Commandante resolveo fazer-se ao largo, e vir no dia seguinte reconhecer a terra, lembrança que me pareceo muito ajuizada e prudente, pois que estando tão próximos d'uma costa para nós inteiramente desconhecida, muitos erão os perigos a que podíamos estar sujeitos, e tanto mais , quanto se nos aprezentava um baixo em que o mar rebentava com muita força, e o qual, projectado como se achava, parecia fecharnos a entrada da bahia, que duas mui notáveis pontas deixavão formada, e que mostrava não ser piquena e alem disso o fumo que distinctamene viamos, nos denunciava a existencia d'habitantes n'aquelle ponto. 
 
(...)
... Era na realidade um espectáculo para mim bem singular a minha recepção naquella. bahia, pois que além de diversos cumprimentos e ceremonias extravagantes do seu uso, mandou o Soba fazer pela sua gente.uma especie de telheiro de ramos para me abrigar do sol, e debaixo mandou estender uma esteira, onde me convidou a sentar, colocando-se elle defronte de mim. Então lhe fiz vêr que nós só pertendiamos a sua amizade, e. que não erao nossas intenções outras, senão trocar as muitas fazendas e generos que possuíamos , por marfim , cera, gado, urzella ; que o trataríamos sempre muito bem, e que só delle solicitava o consentimento de fazer uma casa, onde se recolhessem as muitas cousas que pertendiamos conduzir para ali. A estas proposições simplesmente retribuio, que me responderia no dia seguinte, mui naturalmente para no intervalo ouvir o conselho dos principaes de sua corte, a que chamão Secúlos. Pedio-me por isso, que lhe mostrasse o que trazia , o que fiz, começando por offerecer-lhe alguns objectos, taes como panno azul, missanga branca, aguardente, do que se mostrou muito reconhecido, e mandou trazer leite, milho verde, e um boi, que me deu .em signal de agradecimento, promettendo-lhe que no dia seguinte traria gado para trocar por alguns dos objectos que eu tinha; e assim me retirei para bordo, vindo elle com os principaes dos seus acompanhar-me athe ao melo do caminho para o embarque, e ali se despedido, e eu fui jantar para bordo, e descançar." 
 
(...)
 ...Viemos pois no dia immediato, e com as precisas cautellas e a favor de não pouco trabalho conseguimos entrar nesta bahia, fundeando peias seis horas da tarde sem maior novidade. Logo forao vistas de bordo duas bandeiras brancas, que erão os signaes convencionados com o oficial que tinha ido por terra, algumas fogueiras , gado pastando, algumas arvores, e bastante vegetação & c., tudo isto bastou para confirmar-nos na ideia de ser este o logar que procuravamos , porém como era quasi noute, i penas forão dois escaleres correr a bahia , os quaes voltarão com a noticia de terem visto peia praia muitos negros, que pareciào chamai-os.
 
(...)
...No outro dia fui eu o primeiro a ir para terra com algumas bagatellas de fazendas e missangas, nossas unicas armas, levando comigo sómente tres homens negros e um branco, e havendo previamente combinado com o Commandante, o fazer signal para bordo no caso de me verem perigo; logo que saltei em terra, vi que de longe caminhavào para mim uma multidão de negros, trazendo adiante uma bandeira branca, e depois que nos aproximámos mais , reconheci que a gente que vinha na frente não era gentio, por trazerem jaquetas brancas, quando estes costumào andar nus só com uma tanga. Erão pois um pardo escrivão de Quilengues, com tres soldados pretos da guarnição d'aquelle presidio, alguns Mocotas, ou principaes da Corte de potentados visinhos, que o mencionado official havia mandado adiante, a fim de collocarem as bandeirolas, e socegar os animos da gente das praias, e para o que são muito proprios os homens pardos, mormente os sertanejos, pelo pleno conhecimento do idioma do paiz, vindo por isso a ter muito mais facilidade em conduzir os indigenas aos seus fins.
 
 (...)
...No dia seguinte ainda as ceremónias forão as mesmas, trouxe gado e um pouco de marfim, e offereceu-me leite que acceitei, e de que mandei fazer sopas; porém quando vio o homem que eu havia incumbido d'arranjar a comida, ir pôr o leite ao lume para ferver, se espantou , e disse, que o aquecer o leite fazia mal ao gado, e assim que permittisse que elle deitasse no leite um bocadinho de casca d'uma arvore, que tinha a virtude de destruir o feitiço ou mal que pudesse resultar. Terminado este incidente, fallamos sobre a questão da véspera que tinha ficado pendente da sua decisão, e me disse, que não só consentia, em que fizessemos casa nas suas terras, mas tambem que se levantasse uma fortaleza, para que o gentio do interior os não viesse guerrear para lhes roubar o gado, e que estava certo, que a vinda dos brancos devia augmentar a importancia de suas terras. A final em todo o resto do tempo que ali me demorei, me continuei a dar com elles muito bem, e quando me retirei, os deixei do melhor acordo, fazendo-lhes repetidas promessas de voltar em breve. "
 
(...)
...São os indigenas d'esta bahia, como os Mocorocas , de nação Mucubal, e de vida pastoral, possuem gado das duas especies já mencionadas em grande quantidade, especialmente do vaccun, sendo porém dois terços ou mais desta povoação de vida errante; porque como é immensa a quantidade de gado que possuem, e sendo muito frequente na Africa a falta de chuvas, se vêm obrigados a estabellecer a sua habitação aonde encontrão pastos , o que geralmente acontece sempre proximo dos rios e valles, em que podem achar agua com facilidade, trocando-a por outra, logo que naquelle logar começão a escacear os pastos, A estas habitações chamão sambos ou curraes os quáes são de forma circular , tendo em roda uma ordem de choupanas do feitio de fornos , com uma entrada pequena como a d'estes,e que são formadas de páos espetados muito juntos formando um circulo largo no chão , e estreitando athe se unirem todos na parte superior, e depois de bem cobertas de palha, as barrão e cobrem perfeitamente de barro amassado com bosta , o que depois de seceo as torna impenetraveis á agua, respira-se porém dentro de taes habitações um ar quente e abafadiço, que para nós europeos é insupportavel; apezar disso elles não dormem jamais sem fogo, para o que costumã assentar uma lage no centro das choupanas, e na falta d'ella, uma camada de barro amassado, de que em todo o caso é formado o assento da cabana. Pela parte de fora desta ordem de choupanas, ha sempre um tapume feito de estacadas e ramos de tamarindeiro bravo, e outros arbustos espinhosos, em que abundão aquelles sertões por toda a parte; é pois no espaçoso terreiro do centro, que o gado fica de noite, mas tendo elles o cuidado d''apartar ali as crias, para depois tirarem o leite, seu sustento principal, e de que tambem fazem boa manteiga para diversos usos, a que depois d'apurada e prompta chamão engunde. As mulheres são as que trabalhão na cultura das terras, em quanto os homens só tratão do gado, e no caso de guerra vão esconder aquellas e este, e pelejão então para defender-se simplesmente, pois que não são guerreiros; ha porém povoações no interior que lhes movem guerras para lhes roubar o gado, sua unica riqueza, isto é, por elles assim avaliada."    FIM DE CITAÇÃO.
 
 
 
(1)  O inicio do século xix em Portugal foi o da penetração dos
ideais iluministas de igualdade liberdade e fraternidade, veiculados pela Revolução Francesa (1789), que  tinham mudado o quadro mental europeu,  levaram  às invasões francesas (1807-119, à revolução de 1820, à independência do Brasil (1822), à queda do absolutismo monárquico e triunfo do liberalismo (1834), e à abolição do tráfico de escravos para o Brasil e Américas, (1836), e proporcionaram um novo olhar na direcção das colónias africanas, secularmente estagnadas, sobretudo para Angola, a nova Jóia da corôa, pelas riquezas  por explorar que guardava o seu solo e subsolo.

 
 
MariaNJardim
 
Inclui cópia do REQUERIMENTO de António Joaquim Guimarães Júnior, o fundador, em 1839, da 1ª feitoria de Mossâmedes, e 1 gravura de Mossâmedes datada de 1863. Mossàmedes depois Moçâmedes!
 
 




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