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08 julho 2021

O Menino do Namibe (conto)






(Aos meninos da minha terra distante...)
 
Era um rapaz de família modesta.
Concluído o ensino primário, fizera a admissão à escola de Pesca (que se substituía, em meios menos afortunados, ao liceu).
Que o liceu era para os privilegiados. Havia que subir aos contrafortes da Chela, assegurar a instalação em condições onerosas no Lubango (mais tarde Sá a Bandeira para - pós-independência - tornar ao topónimo original).
Ensaiava com dificuldade os primeiros anos de escolaridade no secundário com uma patente desmotivação e com uma desapontante reprovação.
Os professores conversaram com o pai. Que a criança era apoucada. Que nada devia à inteligência. Que mais apropriado fora oferecer-lhe um curso prático, ao jeito dos preleccionados nas escolas de artes e ofícios ou, no limite, na de capatazes agrícolas que no planalto da Huíla se abria a coeficientes de inteligência do estilo, mais à guisa das tarefas reservadas aos trabalhadores braçais ou pouco menos. Com a vantagem de o curso ser gratuito e o regime de internato - imposto pelas distâncias - assegurado sem dispêndios.
O pai que aspirava, ao menos, que o seu filho varão pudesse concluir com êxito a Escola de Pesca e Comércio que garantia as habilitações mais destacadas do meio, conforma-se à austera sentença dos pedagogos.
Nem todos podem ser inteligentes. Nem todos podem aspirar a posições de destaque, que só se atingiam, na óptica do tempo, pelo mérito. Nem sempre, mas …Ter-se-ia de conformar com os desígnios da Providência. Que o brindara com o menor dos males – o filho era “perfeito”, mas destituído de inteligência, como se dizia "in illo tempore"…
Colhidos os informes da praxe, feito o enxoval mínimo para que pudesse resistir às exigências de um curso de prático agrícola, calções de sorrobeco, bota alta, e o mais que apropriado seria e lá se aperaltava o apoucado jovem para, apartando-se cedo do modesto mas seguro ambiente do lar paterno, correr a novas aventuras. Que a vida já de si é uma aventura… para ousados!
E, no início do ano escolar subsequente que, atentos os rigores do clima e sem cedências, era lá para os primeiros dias de Abril, numa concessão às especificidades locais, lá rumavam com o credo na boca planalto acima num “cama-couve” dos Caminhos de Ferro de Moçâmedes, via por excelência de ligação do litoral ao interior.
Não mais soube do jovem.
Antevia-o como capataz agrícola, transportado para as fazendas de café do norte ou para as explorações de gado vacum no imenso Sul de Angola.
A vida separara-nos.
A transferência do pai no quadro da função pública a que se atinha, obrigara a um distanciamento insuperável: “Quem não aparece, esquece!”
A vida prosseguia, porém, em toada de relativa tranquilidade nos anos sessenta. Angola acordara do torpor e a convulsão gerada pelo conflito armado não permitira eventual reencontro.
Nem sequer nas fileiras, onde as gerações medidas pela data de nascimento se reencontravam para ir às “sortes” e cumprir os seus deveres com a nação….
Angola regenerara-se.
O conflito perdera a intensidade original.
Angola despontava para um progresso económico e social notável no final dos anos sessenta, começo da década que se seguira.
Com os acontecimentos de Lisboa, precipitou-se em 74/75 o êxodo, num processo de abandono sem precedentes em África, mau grado o que o Congo Belga, com a outorga da independência, experimentara às mãos das hordas de Patrice Lumumba.
As famílias fragmentaram-se, o desenraizamento consumou-se, as comunidades pulverizaram-se. E nem dos mais próximos havia - quantas vezes! - notícias.
A dispersão permitiu que famílias inteiras se disseminassem pelos cinco continentes – houve quem se tivesse refugiado na África do Sul, quem se dispusesse a demandar o Brasil, quem houvesse logrado exílio nos Estados Unidos e no Canadá, ou quem houvesse rumado à Europa, para além de “retornar” a Portugal, como quem tivesse pretendido a distante Oceania …
O desmembramento das famílias foi a tónica, a despeito de substancial número se haver concentrado em Portugal, em aproveitamento do “gesto de magnanimidade” da Rússia e dos Estados Unidos, “secundado” pela ponte aérea promovida atabalhoadamente por um Portugal em desorientação completa…
Os anos escoaram-se.
Na vertigem do tempo, mais de meio século transcorrera.
No verão incaracterístico que ora se vive, obrigações laborais levaram o jovem dos anos cinquenta (que em Moçâmedes se mantivera e se refugiara em Portugal após tamanha catástrofe) a Cascais.
Já no restaurante, em posição estratégica, surpreendera-se pela entrada de um cavalheiro de porte altaneiro, traços definidos, ar distinto. Mas algo lhe dizia que naquele rosto se escondia algo de familiar.
Num esforço de memória, não conseguiu entrevê-lo com nitidez no seu álbum de recordações.
Os olhares cruzaram-se. E no fácies do estranho (?!) como que um outro rosto se desenhara, nas proporções adequadas do tempo.
E, como que num impulso, precipitou-se sobre o recém-chegado:
- Tenho a vaga sensação de que o conheço.
- Talvez. Tantos os lugares. Tantas as circunstâncias …
- Será de Moçâmedes?
- Onde é que isso já vai…
- Escola de Pesca?
- Sim …
- Mas tu és o …!
E caíram nos braços um do outro.
Houve logo que alterar os planos para o almoço. E o rosário de recordações começou a desfiar-se…
- É facto: estive na Escola de Capatazes Agrícolas, no Tchivinguiro.
E as revelações, de todo surpreendentes, vieram à tona.
É facto que se não havia adaptado nem às disciplinas nem à disciplina da Escola de Pesca. As matérias - enfadonhas para a sua sensibilidade. Menor empatia com os mestres. Um desapontamento permanente.
Uma inadaptação flagrante, que nada faria superar, que nada redimiria.
A trasladação para o Planalto, porém, fora profícua.
Ao invés, o clima era propício ao estudo da teoria (rudimentar) que, ante a essência do curso, se aliava à prática, em permanente apelo ao engenho, à criatividade, à conformação das técnicas às concretas situações que se lhes deparariam no campo.
O ambiente era viril. Seria, como ora se usa dizer, para “homens de barba rija”… E, afinal, de tenros meninos se tratava, desmamados alguns, com os cueiros por tirar, outros.
O campo impunha uma certa rudeza. Temperada por um sem-número de actividades culturais complementares, a que um razoável acervo bibliográfico emprestava o tom.
A leitura era um refúgio. Quem lê, vê mais longe, enxerga mais.
Estrutura os próprios horizontes de forma distinta.
A informação não se acha, como ora sucede, ao alcance de um dedo: um mero digitar de uma tecla e o mundo a revelar-se perante a curiosidade que nos impele, nos move, nos projecta.
Nem cinema nem, nos longes de África, a televisão que mal balbuciava no Continente (na Europa) as primeiras palavras.
À cultura física aliava-se uma permanente sede de franquear outras portas, outros acessos.
Ao ensino de carácter eminentemente prático associava-se a "praxis", uma sorte de saber de experiência feito ou de experiências que poriam à prova saberes que as folhas áridas dos livros transmitiam de forma menos aliciante.
Concluído o curso de capatazes sem dor, antes com um enorme entusiasmo, por que estagnar? Porque ceder perante o fascínio de propostas, humildes embora nos números de que se ornavam, mas suficientemente atractivas a qualquer outro que saciaria as suas ambições em horizontes estreitados?
Superada a prova de barreiras, mister seria aceitar desafios outros, quiçá mais exigentes. Na tónica, afinal, do que até então - e de forma elementar - se ensaiara.
Dois anos eram insignificantes para quem, afinal, estaria a beirar os 14 anos, uma adolescência vivida e com muito por viver.
Não se olvide que essa era a idade núbil, a que se considerava, pelas leis da natureza, que distintos ordenamentos contemplavam, como “madura” para o casamento.
Pelo direito canónico, a mulher atingia essa meta aos 12 anos.
No entanto, um estatuto de adultez psicológica adquirido em circunstâncias tais não deveria fazer perigar as opções.
O conselho oportuno de professores sempre presentes que não absorventes, talvez haja propiciado o mais.
E, em correspondência para a família antes do termo do ano escolar, anunciaria – para estupefacção dos mais - que ingressaria, no subsequente, no curso de regentes agrícolas.
O curso de regentes agrícolas conferiria, ao tempo, equivalência ao curso geral dos liceus - o liceu sempre como medida-padrão… meta inalcançável de tantos, que só os anos sessenta trariam com mais abundância após as reformas do almirante Lopes Alves.
Ora, nas circunstâncias do tempo - em que uma quarta classe era uma extraordinária ferramenta para a vida, um autêntico curso superior, passe o exagero, ante a limitação dos horizontes, dos saberes e dos recursos à época - possuir como habilitações algo equivalente ao curso geral dos liceus (o nono ano de escolaridade por correspondência com as tabelas actuais) representaria a algo de considerável.
Tanto mais que o sujeito de que se trata havia sido qualificado, pelas tábuas de medir dos professores da Escola de Pesca e Comércio, como um rapaz descapacitado, de menor inteligência, com limitações manifestas, incapaz de assimilar uma letra do tamanho de um boi.
E se bem se decidira, melhor afrontara as exigências de um curso multipolar com características tecnicizantes próprias. E um grau de exigência muito superior ao limitante curso rudimentar de capatazes agrícolas.
A família teve de investir em novo enxoval, tais as condicionantes da formação que encetava.
E, depois de um verão excitante em que por cenário tinha a Praia das Miragens (ainda com os toldos colectivos com cobertura a caniço e os alteados postes que o recurso aos carris dos caminhos de ferro emprestava um ar grotesco), lá abalara de novo para as altaneiras terras da Huíla, a fim de se expor às duras provações de um curso que andava de braço dado com as tarefas rudes da terra e as renúncias que o isolamento imporia, mau grado o contacto permanente com a natureza, por vezes inóspita, tantas vezes madrasta ante as sujeições às pragas, às doenças tropicais e a condições ásperas de vida.
Quem desfruta hoje em dia de condições outras, dificilmente imaginará o que foi o curso de vida de quem tinha o mato por pátria e as carências como estímulo à resistência, à afirmação de domínio por sobre as hostilidades com que o quotidiano presenteava o ser humano.
E a formação, com graus de dificuldade variáveis ante os condicionalismos do tempo, processou-se com regularidade, a que qualquer espírito medianamente dotado corresponderia sem objecções de qualquer ordem.
Os anos sucederam-se.
A formação cumprira-se com laivos de brilhantismo, acrescentaremos nós.
Que o interlocutor, por razões de modéstia, se não atrevera a manifestar.
E ao curso de regentes agrícolas (que mais tarde passara a proporcionar aos seus detentores o grau de engenheiros-técnicos agrários quando as escolas, de ensino médio, se transformaram em superiores, com a inteira equiparação dos titulares das habilitações de pretérito), sucederam-se as “paralelas” que, ao tempo, corresponderiam ao curso complementar dos liceus, isto é, ao antigo 7º ano (11º de escolaridade pelas contas de hoje, mas como ano terminal dos estudos secundários, para os que não saibam).
E com enorme brilhantismo, o menino do Namibe concluíra as “paralelas” com dispensa da “aptidão à Universidade”. Com classificações notáveis. O apoucado, o destituído, o descapacitado…
Em meio à narrativa, o colega distante que o reencontrava em circunstâncias tais, interrompera-o para - em jeito de ironia - lhe dizer: mas nós, meninos do Namibe, éramos conhecidos por termos uma memória de eleição, privilegiada, já que a alimentação-base era o peixe - de espécies variadas, mas do célebre “cachucho” que se vendia na “praça do peixe”, em lugar escavado nas furnas (na lota, que não tinha esse nome), ali para as bandas da Torre do Tombo, a cinco tostões o quilo e que era, afinal, o prato preferencial de gente de toda e qualquer condição.
E a narrativa prossegue.
Ao termo das paralelas correspondera a criação no Huambo da Faculdade de Agronomia., nos Estudos Gerais de Angola criados pelo General Venâncio Deslandes e pelo ministro Adriano Moreira, com notável retardamento ante as necessidades específicas do território. E, sem surpresa, demandara a capital do Huambo para aí prosseguir os seus estudos.
Fizera-o de modo brilhante. Mas, influenciado, sabe Deus por quem, propusera-se, de molde a dispor de um canudo com efectivo reconhecimento, no termo do terceiro ano, prosseguir a sua formação na então Metrópole, no Instituto Superior da Agronomia, à Tapada da Ajuda.
Unânime era a convicção de que as notas conferidas em Angola estariam naturalmente inflacionadas. O que de todo as provas prestadas sequencialmente infirmavam. Ensino exigente, ensino de qualidade, classificações ajustadas à natureza específica da metodologia seguida, pelo recurso à simbiose teoria-prática, em reconhecimento pelo esforço de discípulos modelares cuja sede de saber era inesgotável.
A disponibilidade inteira dos mestres de mão cheia que elegeram a África como campo experimental dos seus excelsos "curricula", constituíra um "plus" susceptível de contradistinguir os beneficiários desse ingente esforço. Do esforço desse escol de pioneiros que jamais obtiveram - na voragem dos acontecimentos e nos esquecimentos de uma nação caracterizada por sua memória curta – a gratidão das instituições por haverem doado a África a sua capacidade, o seu engenho e arte, em provas de dedicação ímpar que se espelhou nos excelentes quadros que formaram e se impuseram um pouco por toda a parte.
A mundividência que revelara – nas duras provações do Tchivinguiro e nas luzes da florescente capital do Huambo – cedo se apresentara como um bordão para uma adaptação sem história.
Os horizontes de África não se conformavam, por vezes, aos quadros estreitos que se moldavam num rincão com características diferentes, a que a dimensão do tempo e do espaço conferia um não sei quê de estreitamento.
Mas o que se lhe deparava de distinto não fora susceptível de atemorizar um espírito forjado em condições-limite, a que a escola do Tchivinguiro emprestara a suficiente couraça para os embates que a vida reservasse a quem quer que fosse.
E as expectativas dos mais de que soçobraria perante um hipotético maior grau de exigência na Ajuda não se confirmaram.
Obstáculo poderiam ser os invernos rigorosos ante a amenidade do clima da Huíla e a experiência nos trópicos que vivera até depois dos vinte.
Mas a um espírito – cujas agruras de uma vida dura conferiram os alicerces para se resistir também às intempéries naturais – nada amedronta e a tudo se reage a contento.
E o menino do Namibe a que se augurava uma vida tranquila como capataz agrícola nos longes de África, vencido o primeiro dos dois anos que se propusera trilhar em Lisboa, encimava já o quadro de honra. Quadro de honra que os avaros tempos da rasoira revolucionária, avessos ao mérito, fariam precipitar em queda no nivelador Abril a que o brilho das estrelas ofuscava na mediocridade pungente de que se exornavam.
E em um ano mais - com a conclusão do curso superior de Agronomia com as classificações mais elevadas - como que se regenerara o perfil do jovem destituído de capacidade a quem mestres pedagogicamente menos dotados e psicologicamente impreparados vaticinaram um ignoto devir entre o Caraculo e o Munhino, como auxiliar das explorações agro-pecuárias que ali floresciam ou então como capataz em sentido próprio nas fazendas de um qualquer cafeicultor do centro ou do norte do território.
Haurido o diploma, reconhecido o mérito (difundidos "nomen, tratatum et fama": o nome, o tratamento e a fama), oportuno convite lhe dirigiram os mentores da Agronomia em Angola para um lugar docente em área de particular exigência científica.
O retorno a penates com que lhe acenaram, constituiria o alicerce de um novo ciclo na sua vida, de devoção à ciência, à cultura, à pedagogia.
Prosseguira de forma indómita a sua formação, a investigação passara a dominar os seus dias e as longas noites subtraídas ao repouso.
Aliava o desporto, como antídoto ao sedentarismo, ao extremo labor intelectual.
A estrutura de base era o seu certificado de capataz agrícola (ou rural, tanto faz…).
E daí para um centro europeu de excelência… um passo muito curto.
O aproveitamento das suas faculdades de ponta, excepcionais em extensão e profundidade, constituíra preocupação imediata dos que agora apostavam nos seus privilegiados dotes intelectuais. E a breve trecho, concluídas as provas de doutoramento, precipitado o caos em Angola após a ignomínia do abandono colonial mais abjecto, surge - com oportunidade manifesta -, em resultado dos méritos que, entretanto, se lhe reconheceram além-fronteiras, honroso convite para uma instituição internacional. Em funções científicas definidas. Não para uma qualquer e desproporcionada missão de objectivos políticos difusos ou nutridos.
Aí cumpriria uma notável carreira de mais de trinta anos.
E retornaria, afinal, não ao seu chão natal, mas à extensão natural que o outrora “jardim à beira-mar plantado” - na descontinuidade telúrica - sempre representara.
Chegara há dias, verão adentro, nas feições incaracterísticas de um estio pardacento e pluvioso.
Instalara-se em Cascais.
Seu propósito: desfrutar das delícias da terra-mãe a que o ligavam laços de ancestralidade, conquanto no seu peito ardessem ainda as febres de uma África que marca, de um deserto que imprime um cunho de vida, na imensidão do areal, que Namibe, no idioma nana, quer significar exactamente "enorme" - são 1.600 Km2 de extensão -, cujo símbolo maior, tal qual o imbondeiro o é para a portentosa Angola, é a “welwítchia mirabilis”, que resiste à rudeza do clima e à ausência de água, já que não há ali, no extenso areal, precipitação detectável, como lição perene de vida.
E, para além dos miríades de documentos de suma importância que produzira em mais de três decénios de deambulações pelo mundo (e pelos corredores do poder em todas as latitudes), que nos arquivos oficiais se depositam, pretende dispor do remanescente dos seus dias, cumpridas as missões oficiais, para se consagrar à escrita - quem sabe se para versar os temas técnicos que ainda lhe avassalam o espírito, quem sabe se para narrar aventuras outras que as viveu no seu imenso peregrinar pelo mundo, em jeito de um relato para a posteridade.
Menino do Namibe, que bico-de-lacre encantara, que se não deixara aprisionar pelos curtos horizontes de quem transportara para África a estreiteza de análise reflectida em um qualquer beco de um lugarejo medieval, ganhara asas, projectando-se no universo da ciência, tornara-se cidadão do mundo e ali estava extasiado, com o olhar vago, distante, como se o seu destino se houvesse espraiado no ignoto mar de que a baía de Cascais era só princípio …
Menino do Namibe, que no verdor da vida forjara o seu carácter entre homens de envergadura moral e intelectual, como os que na exuberância do planalto souberam cultivar com o maior desvelo as plantas sãs, erradicando as ervas daninhas, e a fazer germinar as sementes de que se nutrem os campos do devir. E cujo projecto, que se desmoronou nas contradições da história e na loucura dos homens, se expandiu nos dilectos filhos que deram ao mundo nota de que não há horizontes cerrados quando o espírito paira por sobre os apertados limites de um mundo sem fronteiras.
Menino do Namibe, meninos do Namibe, que avessos aos trambolhões da história perseguiram sempre a magnitude dos horizontes quais miragens que no deserto se dissimulavam para se transmudarem em realidades sentidas - de vidas com sentido -, talhadas no cacimbo do inverno, no vento leste fustigante que açoitava corpo e alma, nas poeiras deslizantes de um Kalahari de ilusões e de magia onde a vida viceja e as welwítchias - indiferentes à ingratidão e à cólera da natureza - mantêm a sua majestade e a suma beleza que as enroupa.
Menino do Namibe que soube, como tantos outros, superar a mediocridade dos que o queriam gloriosamente medíocre…
Mário FROTA
apDC - Direito do Consumo - Coimbra

21 janeiro 2021

90 colonos da Madeira para Moçamedes, rumo ao Lubango , Huila. 1885.

Lista (3 páginas) com registo de 90 colonos, indicando o nome do chefe de família e a dimensão do agregado familiar. Os primeiros 60 colonos trataram da documentação junto do Gov. Civil do Funchal e os seguintes junto do Gov. Civil Moçâmedes. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU)




 

 

 

 

10 dezembro 2020

SOBRE O DIA DA CHEGADA DOS PRIMEIROS BRANCOS A MOÇÂMEDES .

SOBRE O DIA DA CHEGADA DOS PRIMEIROS BRANCOS A MOÇÂMEDES  

(*) Requerimento

Diz a História que o jovem António Joaquim Guimarães Júnior foi o fundador, em 1839, da 1ª feitoria, a par do recentemente formado "Estabelecimento Prisional de Mossâmedes", onde não existiam relações comerciais com os gentios do sertão do sul, de modo a tornar efectiva a presença de Portugal. Aliás, a iniciativa teria partido do próprio Guimarães, como ele mesmo afirma. Tinha apenas 20 anos quando fez chegar à Secretaria do Ultramar um requerimento e obteve os meios necessários para a realização de tal empresa, em que se oferecia para montar em Moçâmedes, no sul de Angola, uma indústria de charqueação (carne salgada e seca) e de cortumes, além do comércio usual daquela província, isto é, a troca de cera, marfim, gomma copal, urzella & c., "por fazendas, missanga, e géneros do agrado daqueles povos de vida pastoril, que possuíam grande quantidade de gados vaccum, e ovelhum."  A esta 1ª feitoria outras se seguiriam,  e Moçâmedes onde o clima ameno começava  a  ser divulgado, e queee nada tinha a ver com a doentia e pantanosa Benguela, ceifeira de vidas de europeus,  inaugurava assim um novo paradigma  colonial que se pretendia de fixação de gentes da metrópole e  de desenvolimento económico, num  tempo em que o tráfico de escravos para o Brasil e Américas tinha  sido abolido na lei em 1836, (1) mas mantinha-se na clandestinidade, sendo definitivamente abolido apenas em 1869.

Considerava-se então que convinha desenvolver um ramo novo da indústria, porquanto Guimarães Júnior encontraria consumidores para os seus produtos nas embarcações do Estado provenientes da Ásia,  que em Moçâmedes podiam abastecer-se, tanto mais que a Ilha de St.a Helena, onde estacionavam baleeiros vindos da América e dedicados à pesca da baleia nos mares da Baía dos Tigres, distava apenas oito dias de viagem.
 
O progresso da colónia exigia a presença de colonos no território parciaomente ocupado, e que até então estavam ausentes, mas também que os autóctones não mais fossem traficados para o Brasil e Américas, mas levados a trabalhar , "a civilizar-se pelo trabalho", dirigido para obras de fomento e desenvolvimento económico da colónia (abertura de vias de comunicação, estradas,  caminho de ferro,  pontes, etc etc), e  também para atrair possíveis investidores de capitais.
 
Fazendo uma retropectiva  da situação, o tráfico de escravos para o Brasil e Américas, o negócio tinha sido abolido na lei de 12 de Dezembro de 1836, já no qudro do liberalismo triunfante em Portugal,  e havia passado à clandestinidade. Por essa altura tinham entrado em acção brigadas marítimas que patrulham a costa, na pereguição dos embarques de escravos, Pedro Alexandrino da Cunha fora escolhido pelo Governador e Vice Almirante Manuel António de Noronha para chefe da estação naval de Luanda,  competindo-lhe vigiar os embarques entre Molembo e Luanda.  Acto contínuo, em 1839 Pedro Alexandrino assume a missão de explorar a costa ao sul de Benguela,  como geógrafo e roteirista,  e fez-se acompanhar  do António Joaquim Guimarães Júnior que na qualidade de comerciante  ia estudar a probabilidade instalar na costa a sul de Benguela feitorias comerciais, tendo aportado em 22 de Setembro de 1839, na velha "Manga das Areias", Baia dos Tigres, derivando em seguida para Moçâmedes.  Do mesmo empreendimento fez parte o tenente Gregório José Garcia, nomeado comandante do novo estabelecimento da Baía de Moçâmedes,  o Forte de S. Fernando, para onde deveria  dirigir-se, por terra, e  juntar-se a Alexandrino da Cunha e a Guimarães, conforme "Memória Sobre a Exploração da Costa Sul de Benguela na África Ocidental e Fundação do Primeiro Estabelecimento Comercial na Baía de Mossâmedes", da autoria de Guimarães publicada em Lisboa no ano de 1842.   Garcia depressa iria incompatibizar-se com Guimarães, cuja feitoria acabaria incendiada  e completamente destruída. Porquê?  
 
O jovem investidor conta-nos no seu livro atrás citado,  que  caira de imediato no agrado dos sobas da região, Quipola e Giraúlo, agrado esse que cairia no desagrado do Garcia.  Qual a razão?  Concorrência? A resposta, seguindo a pista de Guimarães, teria que levar a novas pequisas.
 
Guimarães ficou conhecido como o "Gato com Botas", assim ficou baptizado  também, o local do seu estabelecimento em Moçâmedes.  Porquê?   A história do Gato de Botas mostra que a astúcia, a inteligência e a capacidade de encontrar soluções criativas pode ser mais valiosa do que possuir bens materiais. Além disso, também destaca a importância da confiança e da lealdade, já que o jovem confiou no seu gato e este o ajudou a alcançar a felicidade e o sucesso. Terá alguma relação com o papel deempenhado por Guimarães para cativar o "sobas" à sua chegada  e estabelecimento em Mossâmedes?  O jovem comerciante,  no livro que deixou para a posteridade, aponta para as ambições pessoais do tenente Gregório José Garcia, o comandante do novo estabelecimento. A verdade é que à chegada Guimarães foi bem recepcionado pelo Soba  da região que logo se prontificou a mandar a sua gente erguer uma espécie de telheiro de ramos onde expôs as fazendas que trouxera consigo com objecto de troca por géneros como  marfim , cera, gado, urzella, etc., tendo solicitado consentimento para erguer uma casa a fim de armazenar outras coisas  que pertendia conduzir para ali. Para melhor percepção, trancrevo a seguir o relato efectuado por Guimarães na obra referenciada:  
                                                ...............
 
Segue, no respeito da escrita da época, parte do relato da entrada da corveta "Isabel Maria" na baía de Moçâmedes, onde tiveram que se confrontar com um "banco" de areia que atrapalhava a navegação. A parte da Memória aqui descrita, em nada foi alterada, para que não se perca uma "gota" deste impressionante relato que nos mostra aquilo que era a Moçâmedes nesse tempo: nada, absolutamente nada, apenas um areal desértico junto ao mar, banhado por um rio seco a maior parte do ano, o rio Bero, mas suficiente para que a vida ali se tornasse possível... Isto, porque retinha água no solo e no sub-solo, quando na época das chuvas as água das enxurradas invadirem as margens, e levava  consigo fertilizantes naturais para novas sementeiras, gerando uma espécie de microclima temperado que mais tarde faria das "Hortas de Mossâmedes" um verdadeiros oásis.
 
"...Foi então que em menos de quarenta e oito horas avistámos a bahia de Mossâmedes, duvidando porém se seria ella, posto que todos os indícios, que a distancia nos deixava perceber, combinassem com a ideia que eu fazia d'este logar, e como erão já cinco horas da tarde, o Commandante resolveo fazer-se ao largo, e vir no dia seguinte reconhecer a terra, lembrança que me pareceo muito ajuizada e prudente, pois que estando tão próximos d'uma costa para nós inteiramente desconhecida, muitos erão os perigos a que podíamos estar sujeitos, e tanto mais , quanto se nos aprezentava um baixo em que o mar rebentava com muita força, e o qual, projectado como se achava, parecia fecharnos a entrada da bahia, que duas mui notáveis pontas deixavão formada, e que mostrava não ser piquena e alem disso o fumo que distinctamene viamos, nos denunciava a existencia d'habitantes n'aquelle ponto. 
 
(...)
... Era na realidade um espectáculo para mim bem singular a minha recepção naquella. bahia, pois que além de diversos cumprimentos e ceremonias extravagantes do seu uso, mandou o Soba fazer pela sua gente.uma especie de telheiro de ramos para me abrigar do sol, e debaixo mandou estender uma esteira, onde me convidou a sentar, colocando-se elle defronte de mim. Então lhe fiz vêr que nós só pertendiamos a sua amizade, e. que não erao nossas intenções outras, senão trocar as muitas fazendas e generos que possuíamos , por marfim , cera, gado, urzella ; que o trataríamos sempre muito bem, e que só delle solicitava o consentimento de fazer uma casa, onde se recolhessem as muitas cousas que pertendiamos conduzir para ali. A estas proposições simplesmente retribuio, que me responderia no dia seguinte, mui naturalmente para no intervalo ouvir o conselho dos principaes de sua corte, a que chamão Secúlos. Pedio-me por isso, que lhe mostrasse o que trazia , o que fiz, começando por offerecer-lhe alguns objectos, taes como panno azul, missanga branca, aguardente, do que se mostrou muito reconhecido, e mandou trazer leite, milho verde, e um boi, que me deu .em signal de agradecimento, promettendo-lhe que no dia seguinte traria gado para trocar por alguns dos objectos que eu tinha; e assim me retirei para bordo, vindo elle com os principaes dos seus acompanhar-me athe ao melo do caminho para o embarque, e ali se despedido, e eu fui jantar para bordo, e descançar." 
 
(...)
 ...Viemos pois no dia immediato, e com as precisas cautellas e a favor de não pouco trabalho conseguimos entrar nesta bahia, fundeando peias seis horas da tarde sem maior novidade. Logo forao vistas de bordo duas bandeiras brancas, que erão os signaes convencionados com o oficial que tinha ido por terra, algumas fogueiras , gado pastando, algumas arvores, e bastante vegetação & c., tudo isto bastou para confirmar-nos na ideia de ser este o logar que procuravamos , porém como era quasi noute, i penas forão dois escaleres correr a bahia , os quaes voltarão com a noticia de terem visto peia praia muitos negros, que pareciào chamai-os.
 
(...)
...No outro dia fui eu o primeiro a ir para terra com algumas bagatellas de fazendas e missangas, nossas unicas armas, levando comigo sómente tres homens negros e um branco, e havendo previamente combinado com o Commandante, o fazer signal para bordo no caso de me verem perigo; logo que saltei em terra, vi que de longe caminhavào para mim uma multidão de negros, trazendo adiante uma bandeira branca, e depois que nos aproximámos mais , reconheci que a gente que vinha na frente não era gentio, por trazerem jaquetas brancas, quando estes costumào andar nus só com uma tanga. Erão pois um pardo escrivão de Quilengues, com tres soldados pretos da guarnição d'aquelle presidio, alguns Mocotas, ou principaes da Corte de potentados visinhos, que o mencionado official havia mandado adiante, a fim de collocarem as bandeirolas, e socegar os animos da gente das praias, e para o que são muito proprios os homens pardos, mormente os sertanejos, pelo pleno conhecimento do idioma do paiz, vindo por isso a ter muito mais facilidade em conduzir os indigenas aos seus fins.
 
 (...)
...No dia seguinte ainda as ceremónias forão as mesmas, trouxe gado e um pouco de marfim, e offereceu-me leite que acceitei, e de que mandei fazer sopas; porém quando vio o homem que eu havia incumbido d'arranjar a comida, ir pôr o leite ao lume para ferver, se espantou , e disse, que o aquecer o leite fazia mal ao gado, e assim que permittisse que elle deitasse no leite um bocadinho de casca d'uma arvore, que tinha a virtude de destruir o feitiço ou mal que pudesse resultar. Terminado este incidente, fallamos sobre a questão da véspera que tinha ficado pendente da sua decisão, e me disse, que não só consentia, em que fizessemos casa nas suas terras, mas tambem que se levantasse uma fortaleza, para que o gentio do interior os não viesse guerrear para lhes roubar o gado, e que estava certo, que a vinda dos brancos devia augmentar a importancia de suas terras. A final em todo o resto do tempo que ali me demorei, me continuei a dar com elles muito bem, e quando me retirei, os deixei do melhor acordo, fazendo-lhes repetidas promessas de voltar em breve. "
 
(...)
...São os indigenas d'esta bahia, como os Mocorocas , de nação Mucubal, e de vida pastoral, possuem gado das duas especies já mencionadas em grande quantidade, especialmente do vaccun, sendo porém dois terços ou mais desta povoação de vida errante; porque como é immensa a quantidade de gado que possuem, e sendo muito frequente na Africa a falta de chuvas, se vêm obrigados a estabellecer a sua habitação aonde encontrão pastos , o que geralmente acontece sempre proximo dos rios e valles, em que podem achar agua com facilidade, trocando-a por outra, logo que naquelle logar começão a escacear os pastos, A estas habitações chamão sambos ou curraes os quáes são de forma circular , tendo em roda uma ordem de choupanas do feitio de fornos , com uma entrada pequena como a d'estes,e que são formadas de páos espetados muito juntos formando um circulo largo no chão , e estreitando athe se unirem todos na parte superior, e depois de bem cobertas de palha, as barrão e cobrem perfeitamente de barro amassado com bosta , o que depois de seceo as torna impenetraveis á agua, respira-se porém dentro de taes habitações um ar quente e abafadiço, que para nós europeos é insupportavel; apezar disso elles não dormem jamais sem fogo, para o que costumã assentar uma lage no centro das choupanas, e na falta d'ella, uma camada de barro amassado, de que em todo o caso é formado o assento da cabana. Pela parte de fora desta ordem de choupanas, ha sempre um tapume feito de estacadas e ramos de tamarindeiro bravo, e outros arbustos espinhosos, em que abundão aquelles sertões por toda a parte; é pois no espaçoso terreiro do centro, que o gado fica de noite, mas tendo elles o cuidado d''apartar ali as crias, para depois tirarem o leite, seu sustento principal, e de que tambem fazem boa manteiga para diversos usos, a que depois d'apurada e prompta chamão engunde. As mulheres são as que trabalhão na cultura das terras, em quanto os homens só tratão do gado, e no caso de guerra vão esconder aquellas e este, e pelejão então para defender-se simplesmente, pois que não são guerreiros; ha porém povoações no interior que lhes movem guerras para lhes roubar o gado, sua unica riqueza, isto é, por elles assim avaliada."    FIM DE CITAÇÃO.
 
 
 
(1)  O inicio do século xix em Portugal foi o da penetração dos
ideais iluministas de igualdade liberdade e fraternidade, veiculados pela Revolução Francesa (1789), que  tinham mudado o quadro mental europeu,  levaram  às invasões francesas (1807-119, à revolução de 1820, à independência do Brasil (1822), à queda do absolutismo monárquico e triunfo do liberalismo (1834), e à abolição do tráfico de escravos para o Brasil e Américas, (1836), e proporcionaram um novo olhar na direcção das colónias africanas, secularmente estagnadas, sobretudo para Angola, a nova Jóia da corôa, pelas riquezas  por explorar que guardava o seu solo e subsolo.

 
 
MariaNJardim
 
Inclui cópia do REQUERIMENTO de António Joaquim Guimarães Júnior, o fundador, em 1839, da 1ª feitoria de Mossâmedes, e 1 gravura de Mossâmedes datada de 1863. Mossàmedes depois Moçâmedes!
 
 




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01 julho 2020

O COLÉGIO DE NOSSA SENHORA DE FÁTIMA EM MOÇÂMEDES : INFRAESTRUTURAS E EQUIPAMENTO


 
  COLÉGIO DE NOSSA SENHORA DE FÁTIMA DE MOÇÂMEDES
 
 

Sobre Equipamentos e infraestruturas



O projecto do Colégio de Nossa Senhora de Fátima em Moçâmedes, actual cidade de Namibe, foi encomendado ao Ministério das Colónias. A memória descritiva da primeira versão do projecto, assinada por Eurico Pinto Lopes e Lucínio Cruz, não está datada mas a aprovação é de 10 de maio de 1949, o que localiza o encargo no âmbito do GUC.  A proposta assenta na articulação dos volumes independentes que constituem o conjunto: ensino, internato e a residência das Irmãs. No bloco principal, composto por dois pisos, localizam-se os serviços administrativos e de ensino, com salas de aula distintas para alunas indígenas e alunas europeias. O internato forma uma ala perpendicular com entrada e acesso independentes para o segundo piso. No piso térreo, o recreio coberto e o refeitório localizam-se no volume posterior. A zona residencial das Irmãs foi instalada num edifício independente, com acesso direito à capela, interligado com o conjunto através de uma galeria coberta.A entrada principal do conjunto destaca-se através de um pórtico, contrastando com a horizontalidade dos volumes com longas coberturas em telha.

Conhecem-se dois projectos de ampliação da autoria de Eurico Pinto Lopes. O primeiro, apresentado a 2 de Julho de 1951, amplia e altera a localização das dependências destinadas às raparigas indígenas e transfere a aula infantil e respectivos sanitários para uma área em contacto com a fachada principal. Em 1953, as alterações mais importantes são a ampliação do salão de festas, transformando a cobertura inclinada numa cobertura plana, e a criação de dois laboratórios (física e química).

O Colégio de Nossa Senhora de Fátima segue as características presentes na maioria dos edifícios oficiais projectados pelo Gabinete, contribuindo para a convergência numa linguagem formal representativa do Estado Novo.


Ana Vaz Milheiro
Os Gabinetes Coloniais de Urbanização: Cultura e Prática Arquitectónica.
(PTDC/AUR-AQI/104964/2008)

    22 abril 2020

    O boi-cavalo, machila, a tipoia, o riquexó, o camelo, os carregadores indígenas, as caravanas boeres e finalmente o comboio e o automóvel



    O boi-cavalo


    Os transportes nos primórdios da colonização de Moçâmedes


    Os transportes e as vias de comunicação constituem factores essenciais do desenvolvimento de um território, e desde logo em Moçâmedes, com a chegada dos primeiros colonos  de Pernambuco, Brasil,  estes jogaram mão a meios de transporte práticos que facilitassem a deslocação de pessoas e de mercadorias,  para além dos transportes por via marítima já existentes, ainda que irregulares e demorados, que antes da sua chegada  estabeleciam ligações internas entre os portos de Angola, bem como destes com os portos de Portugal e do Brasil.
     
    O boi-cavalo
     
     A utilização do boi-cavalo como meio de transporte e de tracção animal foi uma prática comum a muitos povos de África, e foi seguida pelos colonos de Moçâmedes nesses tempos iniciais, em que se viam obrigados a percorrer grandes distancias, sem terem acesso a cavalos ou a outros meios de transporte, substituindo-os pelos bois. Bois-cavalos eram utilizados nas suas deslocações às hortas na labuta agrícola, como vem citado em algumas obras da época, existindo menções à  utilização por  Bernardino Freire de Figueiredo Abreu e Castro, o chefe da 1ª colónia de 1849, nas suas deslocações à Quinta dos Cavaleiros.
     
    A saber, aquando da chegada de Pernambuco dos primeiros colonos, já se utilizava o boi-cavalo, como se pode concluir da crónica entusiasmada e radiante escrita por Bernardino de Figueiredo de Abreu e Castro, em 28 de Outubro de 1849, por ocasião da distribuição e medição dos terrenos  que as autoridades, sob o rigor do sol, percorriam montados em bois-cavalos, e que reproduzimos parcialmente:

    “[...] lá se vê um carro carregado de caibros; há ali pretos conduzindo  junco e tábuas; acolá as autoridades, montadas em bois, e medindo os terrenos; noutra parte se quebra pedra, que se vai carregando juntamente  com o barro [...]” In BOLETIM do Governo Geral da Província de Angola nº 218 (1848-12-01).

    Uma outra prova da crescente utilização do boi-cavalo é dada por um artigo inserto no Jornal «Mossamedes», nove meses antes da chegada à vila de mais de duas centenas de colonos madeirenses, destinados ao povoamento do vizinho planalto da  Huíla, e do qual transcrevemos o essencial:

    “[...] no período embrionário da colonização, Francisco da Maia Barreto, [...] se dirigia, de véspera, escarranchado no seu boi-cavalo cor de rato, até às  hortas e ao Quipola [...] e, no dia seguinte, entrava na vila [...] sob espessa  nuvem de poeira, à frente dum esquadrão de trinta a quarenta cavaleiros [...]
    montados em belos e ligeiros bois-cavalos”. In PONCE DE LEÃO, Francisco Augusto, Jornal Mossamedes, nº 45 (20 Fev. 1884).
     
    E Ponce Leão escrevia no Jornal de Mossâmedes em 1884 que Francisco Maia Barreto, da 1ª colónia de 1849, sempre que havia eleições dirigia-se de véspera escarchado no seu boi-cavalo até às Hortas e Quipola, onde arengava profusamente aos agricultores para obter votação em determinada lista, e no dia seguinte entrava na vila com ar triunfante sob espessa nuvem de poeira, à frente de um esquadrão de 30 a 40 cavaleiros que seriam, como supunha, outros tantos votantes da mesma lista, montados em belos e ligeiros bois-cavalos que abundavam na região.
     
    Conclui-se pois, que o uso do boi-cavalo como transporte terrestre é anterior ao desembarque dos colonos vindos do Brasil, num tempo em que era inexistente o gado asinino, era mais frequente o de tracção ou de montada e, ao que  se apurou, já era utilizada pelos autóctones. Entre 1854 e 1859, o número de bois-cavalo quase triplicou, passando de 31 para 78, facto que indicia a escassez de  quaisquer outras alternativas, susceptíveis de dar resposta ao crescimento da população e ao escoamento das produções que progrediam em zonas cada vez mais afastadas da vila e do porto.

    A designação boi-cavalo causava uma certa sensação de surpresa no visitante que, chegado à povoação, se persuadia de ir ver um animal de nova espécie, produto híbrido da raça bovina e cavalar, quando na realidade se tratava de um boi, como tantos outros.


    Segue um texto a este respeito retirado do livro "45 dias em Angola":
     
     
     "...Não é pelo aspecto da Villa e do terreno, que a circunda, que se deve ajuizar da importância de Mossamedes como colónia agricola: para isso teriamos de nos entranharmos para o interior; mas como aqui viemos só para nos restabelecermos de um incommodo febril, que nos accommeteu em Loanda, contentar-nos-hemos de montar um boi-cavallo, e ir até ás Hortas e à quinta dos Cavalleiros. Este nome de — boi-cavallo — produz certa sensação no viajante, que se persuade ir ver um animal de nova espécie, producto hybrido da raça bovina e cavallar. Logo me desenganei quando vi que o exemplar que me apresentaram nenhuma diferença fazia dos outros bois. Como os colonos se viam obrigados a fazer grandes digressões, e não tinham cavalgaduras, o que ainda hoje lhes acontece, resolveram imitar o exemplo de muitos povos da costa, e do interior da Africa, substituindo-as pelos bois. Quasi todos os proprietários da Praia, principalmente os donos de quintas ou hortas, tem o seu boi-cavallo. Escolhem de preferencia para esse effeito os bois mochos, furam-lhes a membrana que separa as ventas, e introduzem n'esse furo uma espécie de bridão de uma só peça, preso a uma cabeçada quasi igual à dos cavallos, e por esse meio os governam e lhes reprimem os ímpetos. Um sellote com retranca, ou sellim razo com rabicho, é o arreio ordinário em que montam homens e senhoras. O gado que está affeito a este serviço anda com uma velocidade pouco própria do — passo do boi — . Percorri umas sete léguas n'esses bois, e a sua andadura não me pareceu peor do que a de um cavallo; mas a espora e o chicote tem de trabalhar continua-mente para lhes recordar o seu dever. Já que temos cavalgaduras, vamos até ás Hortas, que é um passeio que quem vai a Mossamedes não deve deixar de dar. "

    Refere ainda o autor do livro "45 Dias em Angola" , 1862, que quasi todos os proprietários da "Praia", designação que os moradores davam à povoação de Moçâmedes, principalmente os donos de quintas ou hortas, tinham o seu boi-cavalo, escolhendo de preferência para esse efeito bois machos, furando-lhes a membrana que separa as narinas e introduzindo no furo uma espécie de bridão de uma só peça, preso a uma cabeçada quase idêntica à dos cavalos, e por esse meio os orientam e lhes reprimem os ímpetos. Um selote com retranca, ou selim raso com rabicho, é o arreio ordinário em que montam homens e senhoras. O gado afeito a este serviço, andava com uma velocidade pouco própria do passo do boi e, como refere o autor após ter percorrido umas sete léguas nesses bois, a sua andadura não lhe pareceu pior do que a de um cavalo, sendo contudo que a espora e o chicote tem de trabalhar continuamente para os fazer avançar.
     


     Na lateral da capela de Nossa Senhora do Quipola, vêem-se várias tipóias que transportavam peregrinos  em tempos de romaria


    Conforme «Anais do Município de Moçâmedes», para além do boi-cavalo, de início o transporte utilizado era a machila, a tipoia, o riquexó, o camelo, ou melhor o dromedário (este oriundo das Canárias e introduzido no Distrito por Joaquim de Paiva Ferreira, componente da 1ª colónia vinda do Brasil em 1849), e ainda as carroças introduzidas no sul de Angola pelos boeres, que chegavam a ser puxados por quinze parelhas de bois e que vieram promover uma verdadeira revolução nos transportes.
     
    A machila, uma espécie de maca curta, com 150 cm x 60 cm, com uma cadeirinha a meio, conduzida aos ombros de dois machileiros ou carregadores pode ver-se também no desenho que segue. Nas viagens para o interior os colonos usavam normalmente a tipóia (vidé desenho) , que era  constituída por um palanquim de rede ou de lona, para transportar pessoas. Destes  dois últimos meios de transporte de pessoas, há muito desaparecidos de Angola,  apresentamos um simples esboço gráfico, de modo a proporcionar uma imagem mais concreta.
     
     

    Machila e tipóia já era comum entre nativos da região

    Carregadores mondombes numa rua de Moçâmedes em finais do séc XIX


    Mas não podemos esquecer os carregadores africanos, esse meio de transporte humano que foi crucial nas colónias de África e não só, naqueles tempos de carências totais, em que a falta de transportes e de vias de comunicação entravavam o desenvolvimento das regiões. Em Moçâmedes essa tarefa esteve entregue aos mondombes, um trabalho voluntário desses africanos da região do Dombe que emigraram para Moçâmedes, com a a colonização em busca de trabalho, havendo referencias a custos elevados difíceis de comportar e de como esses carregamentos entraram em crise com a chegada das carroças boeres. Foi então que mondombes aos poucos foram deixando Moçâmedes, recolhendo às suas terras no Dombe e região de Benguela de onde eram oriundos. 




    Carroça de estilo bóer  puxada por uma junta de bois, Carroças boers vieram revolucionar os transportes no sul de Angola no ultimo quartel do séc xix.


     Carroças boers numa das ruas de Moçâmedes, descarregando víveres



    Com as carroças boers o transporte efectuado pelos carregadores africanos entram em recessão e a maioria abandonou a região de Moçâmedes e recolheu-se a região de Benguela de onde era oriundo. (2)

    Os meios de transporte e as vias de comunicação constituem factores determinantes do desenvolvimento de qualquer povo, porém quando os primeiros colonos chegaram a Moçâmedes nada tinham ao dispôr que lhes facilitasse a deslocação de pessoas e de mercadorias, se não os meios atrás citados,  Não fora a entrada pelo sul de Angola dos já referidos boers, em 1880, que se estabeleceram na Humpata, os problemas seriam muito maiores. (1)


     Partida inaugural da Composição do CFM rumo ao Saco, em 29 de Setembro de 1905.


    O Caminho de Ferro, uma das grandes reivindicações dos colonos da época chegou tarde, e chegou a Moçâmedes sob a pressão dos imperativos militares e não tanto pelas necessidades económicas que se faziam sentir desde a chegada ali, em 1849 dos colonos luso brasileiros vindos de Pernambuco, que entregues à sua sorte lutavam pela sobrevivência e, não viam, apesar dos esforços,  condições para progredir. 
     
    A ideia de um Caminho de Ferro para Moçâmedes começou a aflorar, mas só veio a concretizar-se em 1905. Desde a Conferência de Berlim (1884-5),  com a "partilha da África" pelas potências europeias industrializadas, o direito histórico deixou de ter qualquer valor e passou a ser imposta a ocupação efectiva das colónias, cujo interior era ainda desconhecido.  Na verdade o velhinho Portugal andava mais preocupado com a Regeneração, após meio século  das mais diversas lutas, guerras. conflitos, oposições que tornaram o país ingovernável até 1851.  Na segunda metade do século xix a industrialização europeia volta-se para Africa, fonte de matérias primas, mão de obra disponível, e mercados consumidores, e Portugal teve que se apressar. Foi entáo que em 1875, à semelhança de outras congéneres europeias, intelectuais e políticos portugueses fundam a sociedade de  Geografia de Lisboa, e logo a seguir começam as expedições  as expedições de Serpa Pinto e Capelo e Ivens, e  em 1884.5 Portugal é convidado a participar na  Conferência de Berlim, onde reuniram várias potèncias europeias interessadas em estabelecer as regras para a chamada "Partilha da África", e enquanto decorria a Conferência desembarca em Moçâmedes um 1º grupo de colonos da Ilha da Madeira, em 1884 e um 2´em 1885,  para se estabelecerem nas terras altas da Huíla, onde há uns anos atrás fora autorizada fixação de um grupo de famílias boeres, fugidas do Transvaal.  Segundo as determinações saídas da célebre Conferência, Portugal obrigava.se a ocupar com famílias  portugueses aqueles trritórios sobre os quais reivindicava direitos históricos que deixavam de ter qualquer valor, Aqueles dois 2 contingentes de famílias de madeirenses  iam iniciar o povoamento branco daquelas terras, próximas da zona de fronteira sul ainda por demarcar, cobiçadas por potências estrangeiras industrializadas, sobretudo alemães, num tempo em  que a pressão estrangeira e os levantes  populares  fizeram de Moçâmedes o porto de desembarque de soldados, armas e munições destinados a essas operações. O caminho de ferro foi lançado em 1905, mas paralisado enquanto decorria a guerra de 1914-18,  só viria a subir a Chela em 1923. Até aí foram sempre precárias as deslocações para o interior praticamente desconhecido, situação que estrangulava a economia do distrito, impossibilitava as trocas e não deixava Angola progredir. A Angola profunda manteve.se secularmente desconhecida para os Portugueses, que não tinham qualquer interferência no viver dos autóctones entregues à sua organização tribal. A causa deste atraso ficara a dever.se ao secular tráfico de escravos que se desenrolou entre as colónias de África subsaariana e o Brasil e Américas. Este período foi de completa recessão e houve colonos que desde há umas décadas se encontravam fixados na regiáo de Moçâmedes,  fugidos do Brasil em 1849 e 1950 que retornaram à Metrópole.


    Quanto ao transporte de mercadorias (lenha, de produtos originários das  fazendas agrícolas, etc.)estes eram efectuados em carros e as carroças traccionadas por bois, uma vez que os primeiros muares,  em número de 5, só chegaram a Mossamedes  procedentes do Rio de Janeiro, mais tarde. Em 1854, havia  na vila  apenas10 carros de bois, subindo para 61 viaturas em 1859. Os bois de tracção também aumentaram  de forma notória: 63 animais em 1854, contra 378 em 1859! O número de muares e de cavalos, no Distrito, foi praticamente irrelevante, apenas atingindo as 5 unidades por espécie no final do decénio. Em compensação, durante o último triénio do século XIX, os asininos progrediram, de forma equilibrada e gradual, cifrando-se em 19  exemplares, no ano de 1859. Em princípio, todos estes animais teriam sido importados, à excepção dos bois de carro, que eram seleccionados e adquiridos a partir dos rebanhos regionais.

     

    MariaNJardim   Direitos reservados

     

    (1) Próprios para caravanas, eram usados pelos militares para o transporte de armas e munições rumo à fronteira sul de Angola, por isso certos exploradores viajaram neles, como Capelo, Ivens e Serpa Pinto, etc. Quando os caminhos terminavam, por vezes a caravana parava durante meses, para abrir uma estrada, conforme vem referido por Serpa Pinto, em "Como eu Atravessei a África":

    (2) "Carregadores" eram povos exclusivamente dedicados ao transporte de mercadorias, de entre os quais se evidenciavam os bangalas nos sertões de Luanda, os bienos e os bailundos nos sertões de Benguela e os mondombes, em Moçâmedes. Eles monopolizaram os transportes pelas vias comerciais que cruzavam as suas terras em detrimento de quaisquer outras comitivas. Eles impunham-se como únicos intermediários entre o interior e a costa, não deixando espaço para a concorrência.

    (3) Entre 1907/1910, governava em Angola Paiva Couceiro, suficientemente intransigente e pragmático para conseguir libertar-se das torrentes emanadas do Terreiro do Paço, e com experiência mais que suficiente para saber que dominar o território implicava ocupar fronteiras, obrigar as autoridades gentílicas insubmissas a submeterem-se, proporcionar a estabilidade necessária para que as caravanas de longo curso pudessem circular, e concretizar o pagamento do imposto de cubata.Como governador geral, deu prioridade à abertura de rotas comerciais para o interior tanto em rodovias, (algumas simples picadas) deu início aos troços de caminhos-de-ferro de Moçâmedes, de entre outroa, mas como foi referido no texto só em 1923 foi possível chegar a Sá da Bandeira. Entre 1914-18 as fábricas europeias estiveram ao serviço da guerra, Portugal endividou-se para estar ao lado dos aliados, e tê-los a seu lado se a Alemanha vencesse a guerra, e no poder de então a l republica (1910-28) que atravessando uma conjuntura difícil, pouco mais pôde fazer nesta época pelas colónias.
     

     Legenda da Gravura exposta: Colono de Mossâmedes montado num boi-cavalo.