O mar de Moçâmedes era riquíssimo em caranguejos de tamanho acima do normal, que viviam a grandes profundidades (a partir dos 400mts de profundidade, como diziam os entendidos), porém estes caranguejos mantiveram-se completamente desconhecidos da população em geral e dos pescadores em particular até à década de 60 e foram descobertos por acaso, no decurso dos trabalhos de investigação ao longo da costa de Moçâmedes do navio de estudo do Instituto de Indústria de Pesca de Angola. A partir daí, alguns pescadores de Moçâmedes passaram a dedicar-se à apanha destes caranguejos através de enormes gaiolas (com cerca de 1m 2), com isco dentro, deixadas no fundo do mar, fazendo dessa actividade o seu modo de vida. Ainda recordo os caranguejos vendidos já cozidos e congelados em grandes arcas por António Camarinha, numa casa alí perto da sede do Ginásio Clube da Torre do Tombo.
Mas havia outro tipo de caranguejos que atraiam os apanhadores da espécie. Eram exemplares da bem mais pequenos, não do mar mas das Hortas. A respeito desta espécie de caranguejos, e não só, transcrevo um texto de Arménio Jardim:
CARANGUEJOS DE MOÇÂMEDES
No tempo do antigamente, as praias de
Moçâmedes, desde a Praia do Mexilhão, junto à Ponta do Pau do Sul, até à
foz do rio Bero, fervilhavam de vida. Tartarugas minúsculas e grandes
cadelinhas eram apanhadas junto à rebentação, umas para brincar, outras
para comer. Garajaus e gaivinas também por lá andavam à caça dos
pequenos peixes que de quando em quando davam à costa, perseguidos pelo
peixe graúdo.
E havia também caranguejos de várias espécies.
Desde logo, aqueles caranguejos de cor de areia, que íam e vinham com a
rebentação na baixa mar e andavam, coitados, em constante luta contra os
garajaus, que o bicho homem não os comia. Havia também os caranguejos
avermelhados, que habitavam nas zonas rochosas da Praia do Mexilhão e
também ali mesmo à mão de semear, na curva da Fortaleza de S. Fernando.
Estas rochas à beira mar plantadas eram um autêntico viveiro de frutos
do mar: mexilhões, burriés, búzios, lapas… e também aqueles saborosos
caranguejos vermelhos, que miúdos e adultos davam caça na baixa mar.
Mas o processo histórico tem destas coisas; e certo dia, o presidente
da Câmara acordou com uma ideia luminosa que girava à volta de
preocupações ambientais, coisa que naquela época ninguém sabia ao certo o
que era. E de pronto resolveu aproveitar o primitivo quiosque do
Faustino, obra prima feita de ferro forjado, transformando-o num
estiloso "cagatório público". E foi colocá-lo mesmo na curva da Fortaleza
de S. Fernando, sobre as ditas rochas e com a porta sem porta virada
para o azul do mar. Era assim criada, dizia o clarividente presidente,
uma ambiência propícia à meditação profunda para todos aqueles
moçamedenses com veia poética, que naquele tempo eram muitos e
talentosos.
O resultado final foi, contudo, um autêntico desastre
ecológico, pois a partir daí os mexilhões cavaram todos para a Praia do
Mexilhão, as lapas e os búzios começaram a mudar de cor, e os
caranguejos encarnados engordaram de tal modo que até os garajaus,
desconfiados, nunca mais lhes deram caça.
Os cabeças de pungo,
como já eram conhecidos os moçamedenses, voltaram-se, então, para os
caranguejos da lagoa do rio Bero. Nas épocas das enxurradas, estes
caranguejos migravam para as bananeiras e plantações de cará das hortas
do Saiago, do Surdo e do Vaz Pereira, que existiam nesse tempo na margem
direita.
E era à noite que iam apanhar esses caranguejos,
conhecidos por caranguejos das hortas e mais tarde crismados de
caranguejos do Mamedes.
Munidos de sacos de serapilheira, lanternas, mais as tenazes da bigorna do ferreiro Joaquim Fechaduras, lá iam todos dar caça aos desgraçados dos caranguejos. Depois, era só pedir emprestados os panelões à D. Teresa, da Pensão do Leão, que ficava antigamente no gaveto mesmo defronte da casa do lendário caçador Teodósio Cabral; e com eles cozinhar no quintal os saborosos caranguejos, ao natural e com meia dúzia de gindungos.
Com o
rolar do tempo, o bar do Mamedes, com os seus já famosos caranguejos das
hortas, viria mesmo a tornar-se num ícone de Moçâmedes até aos idos de
Abril. Mas, depois, com a tragédia da guerra, foi uma debandada geral e
até os caranguejos desapareceram para parte incerta sem darem cavaco a
ninguém.
Restaram, por fim, apenas aqueles que ficaram conhecidos
a nível mundial como os “caranguejos de Moçâmedes”, descobertos
tardiamente e por acaso, pelo navio de estudos biológicos marítimos do
Instituto das Pesca de Angola, caranguejos que, pescados a grande
profundidade através de gaiolas, passaram a ser nova fonte de rendimento
para os pequenos pescadores. Que o diga a D. Rosa, da Torre do Tombo,
que os vendia já cozidos a preço da uva mijona.
No entanto, o
bicho homem continua a ser um predador implacável, para o qual não há
padre Galhano que o valha. E mais tarde ou mais cedo também os
caranguejos de Moçâmedes passarão à história, tal como o primitivo
quiosque do Faustino foi transformado em cagatório público e
desaparecido na voragem da construção da marginal, que tudo levou a eito
sem dó nem piedade: rochas, inscrições, furnas, estaleiros, pontes,
pescarias e História…
Pois, ao fim e ao cabo, o homem é a
própria guerra, que “quanto mais come e consome tanto menos se farta” -
padre António Vieira dixit.