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18 julho 2018

O morro da Torre do Tombo. As «furnas» ou «grutas». As «inscrições»



O «morro» da Torre do Tombo em Moçâmedes, um lugar histórico ainda com muitas das suas históricas e numerosas «furnas» ou «grutas».
Imagem da Missão Hidrográfica, 1930-40 . IICT


Outra foto do «morro» da Torre do Tombo em Moçâmedes, com as suas «furnas» ou «grutas». Imagem da Missão Hidrográfica, 1930-40 . IICT

Hoje já nenhuma destas «inscrições»  podem ser vistas, nem pelas gentes que habitam a região de Moçâmedes, nem pelo visitante ou pelo turista que alí se desloque, ou venha num futuro a deslocar-se. Restam estas fotos e algumas palavras ilucidadoras, mas não suficientes. Provvelmente na data em que esta foto foi tirada,   em finais do século XIX, ou nos inícios do século XX,  seriam estas as mais recentes «inscrições» impressas no morro da Torre do Tombo, a Ocidente da povoação.   Nenhuma delas foi preservada, nem no tempo colonial até 1975,  nem no pós-independência, por falta de consciência daquilo que representa o património histórico de uma terra que merecia ser elevada a património da humanidade. 
 
Goste-se ou não, Moçâmedes representa na História de Angola, o momento de ruptura que marcou o  fim de um  paradigma secular, centrado no tráfico e escravos, e o início  de um novo paradigma, de desenvolvimento e progresso, centrado numa colonização efectiva, com a fixação de familias portuguesas oriundas do Brasil, em 04 de Agosto de 1849. 

 Quando os primeiros colonos chegaram  Moçâmedes, depararam-se desde logo com um conjunto de «grutas» ou «furnas» que percorriam a base do morro da Torre do Tombo, e que já ali se encontravam  desde tempos imemoriais, para servirem de abrigo a mareantes e  a corsários que por ali passavam e que ali faziam «aguada», ou seja, para se abastecerem de água potável na foz do rio Bero,  e descansar antes de prosseguir viagem pelo vasto mundo.  E também se depararam com algumas "inscrições", gravadas na rocha branda do mesmo morro, que outras fotos permitiram que chegasse até nós notícia desse  histórico local de inegável valor histórico que importa desvendar.

 
E assim sendo, amais remota informação que nos chega sobre este histórico local, vem-nos das «Memórias Histórico-Estatísticas» de Brito Aranha. Este autor diz-nos que foi o Tenente Coronel Pinheiro Furtado, enquanto comandante de uma missão de reconhecimento portuguesa,  quem pela primeira vez registou as «inscrições» impressas no Morro da Torre do Tombo, quando fazia uma visita, em 1785,  à «Angra do Negro», nome pelo qual era conhecida a baía de Moçâmedes, nos roteiros de viagem de então. Sabe-se também que foi Pinheiro Furtado quem destacou num ofício datado de 4 de Outubro de 1785, dirigido ao Capitão General de Angol, o Barão de Mossâmedes, que essas «inscrições» estavam datadas desde 1645 a 1770, como mais adiante se descreve. Aliás, pensa-se que foi Pinheiro Furtado quem primeiro deu o nome «Torre do Tombo» ao local, chamando a atenção para as inscrições, e colocando uma ponta de ironia na analogia com o Arquivo Nacional Português com o mesmo nome.

Eis as inscrições ali encontradas nesses tempos remotos, tal como foram registadas pelo Tenente Coronel Pinheiro Furtado, conforme as «Memórias Histórico-Estatísticas» de Brito Aranha.

"Kemy 1723, II-IS-1766;

LUIS DE BARROS passou por aqui em 1765 annos;
ANDRÉ CHEVALIER GY 1665;

JAN DIER;

FRANCISCO DE BARROS,

BERNARDO QUADO ASO DO FEBRO passou por aqui em 1665;

o- FRN - PMO
THOMAZ DECOMBRO 1762 e em 1770;

JOSÉ DA ROSA 1645;

MR 1649;

MEDIDA W 1768;

18-1770;

DE TONCHON;

RIO CONENE;

MUNDO en..65;

SF 1770;

Aqui esteve o patacho GOYA 1665;

MANUEL RODRIGUES COELHO;

MARTIM em 1770;

Aqui esteve o piloto MATEUS PIRES DA SILVA POEDRENEIRA 1665;

THOMAZ DE SOUSA;

O CAPITÃO JOSÉ DA ROSA ALCOBAÇA passou por aqui para o Conene no patacho Nossa Senhora da Nazareth em 4 de Janeiro de 1765;

O CAPITÃO MANUEL DE LIMA;

Aos seis de Fevereiro saltou o Sargento DOMINGOS DE MORAIS nesta baia, que é formosa, em companhia do seu Capitão, JOSÉ DA ROSA, em 1665;

JAN DIMMESEN 1669;

VNSSENGAE PARA 1669;

ADRIIEENDIRERSEN".

A mais antiga destas inscrições é, como se vê, a de 1645, mas o documento referido no número 8 do «Jornal de Mossâmedes», de 25 de Novembro de 1881, cita a seguinte inscrição, de data anterior:  «1641 - D. ANTÓNIO MENESES DA CUNHA ou D. ANTÓNIO DA CUNHA MENESES ». 

Devemos, finalmente, salientar o  reparo de Gastão de Sousa Dias sobre a repetição do nome de José da Rosa e sobre a data de 1765 (4 de Janeiro) , em confronto com a de 1665 (6 de Fevereiro), pois que, segundo as inscrições, na primeira, «passou pela Angra», indo para o Cunene, e, na segunda, «saltou na Baía», diferindo aquela data (1765), precisamente um século da primeira (1665). Acredita Sousa Dias, que houve um erro, devendo a primeira ser rectificada para 1665.

Reproduzimos a seguir a opinião de Sousa Dias:

"...teremos sempre um capitão José da Rosa, visitando a Angra do Negro (Mossamedes) em 1665; e, na melhor das hipóteses, isto é, sendo aceitável a emenda proposta, teremos na Baía de Mossãmedes um capitão José da Rosa, a 4 de Janeiro, no patacho Nossa Senhora da Nazareth, com destino ao rio Cunene, estando de regresso à mesma baía no mês seguinte, altura em que saltou em terra com o sargento Domingos de Morais."

"...Procuremos noutra fonte a confirmação destes factos", continua Sousa Dias...

No segundo volume da "História das Guerras Angolanas" de Oliveira Cadornega, encontra-se a seguinte informação: 
 
«...Sucedeu no governo de André Vidal de Negreiros, ir um homem prático a descobrir esta costa, por nome José da Rosa, por ver se achava alguma notícia de boca de rio que entrasse para os de Cuama (Zambeze), e chegando costa a costa, a dezoito graus para além do Cabo Negro, não achando notícia do que buscava, etc... Há perfeita concordância de datas (concluiu o distinto escritor), pois que o governo de Vidal de Negreiros durou de 1661 a 1666». 
(Gastão de Sousa Dias, in "Pioneiros de Angola»)


Há notícia de que existia no arquivo da Câmara Municipal de Moçâmedes cópia de um documento onde se podia ler o seguinte:
 
«...lembraram-se três moradores de Moçâmedes, em 1858, de o desentulhar e de reproduzir as inscrições...».  
 
Nesta página, não foi, porém, encontrada a referida inscrição de 1641. Esta inscrição foi achada em 1841 por Bernardino José Brochado, que a teria fixado em sua "Memória".

Encontrámos uma referência dos tempos em que o Brasil e Angola estiveram sob a ocupação holandesa, quando Salvador Correia de Sá e Benevides em Dezembro de 1644, partiu para a colónia brasileira com a missão de organizar uma expedição de socorro a Angola, e logo ali contactou com o governador cessante do Rio de Janeiro que entretanto havia sido nomeado governador de Angola, e o encarregou da dita expedição:
 
A partida de Souto-Maior para Angola ocorreu em 08 de Maio de 1645. A armada, constituída por 300 homens, fundeou na Enseada do Negro (Baía de Mossâmedes), a 10 de Julho de 1645, que não era então habitada, e de onde seguiu para norte (evitando Benguela, em poder dos holandeses), até chegar a Quicombo, onde ainda se encontrava um barco da expedição anterior. Porém perante o impasse, que em concreto nada modificou a precária situação em que se encontravam os portugueses em Angola, D. João IV propôs que fosse organizada uma nova expedição, que definitivamente libertasse Angola da ocupação holandesa, o que veio a acontecer em Maio de 1648. Nem o nome de Souto-Maior nem o ano da sua passagem pela  Angra do Negro vêm mencionados na vasta lista das inscrições registadas por Pinheiro Furtado, conforme as «Memórias Histórico-Estatísticas» de Brito Aranha.

No ano de 1862, sobre este assunto refere o autor anónimo de um  livro bastante crítico então publicado, e assim intitulado


"...Visitei a Torre do Tombo, sitio junto da bahia, que assim appellidam, e onde os visitantes e os colonos vão inscrever os nomes n'um grés mole de que é composta parte da costa. A lista é numerosa : lá se acham alguns nomes de certas notabilidades portuguezes, esculpidos por filhos, irmãos, ou primos, que o mau fado ou a ambição levaram àquellas praias ; e outros desconhecidos, mas talvez não menos iílustres, com datas de quasi dous séculos.


Esta foto mostra-nos uma dessas "grutas" ou "furnas" que iam sendo utilizadas pelos proprietários das pescarias. Imagem de Missão hidrográfica, 1930-40. IICT


Estas são as instalações pesqueiras da firma de Martins Pereira/ex Morgado & Morgado, de concessão régia. Aqui podemos ver, à direita, uma das  muitas "grutas" ou "furnas" ali encontradas, então encoberta  pelas instalações pesqueiras.  Imagem de Missão hidrográfica, 1930-40. IICT


 
 Um trecho do morro de Torre do Tombo em finais do sec xix, inícios do sec xx



O morro da Torre do Tombo visto do mar. Esta é a zona onde ficavam as instalações da firma Morgado & Morgado, de concessão régia, que conhecemos como propriedade de João Martins Pereira. Em plena vertente do morro ficava a morada da familia, enquanto junto ao mar ficavam as instalações pesqueiras, a melhor que a cidade ostentava então.


Mais adiante no tempo podemos ver, no centro desta foto as instalações pesqueiras daquela que for noutros tempos a firma Morgado & Morgado, de concessão régia, contudo então já  propriedade de João Martins Pereira. Para nós eram o máximo, e no entanto hoje à distância não passam de rudimentares instalações, reveladoras do  fraco poder financeiro dos "colonos", cuja maioria era  nesse tempo constituída por filhos de colonos "naturais da terra", que iam sobrevivendo  sem ajudas governamentais, nem empréstimos bancários, e volta e meia acometidos ora por crises na captura pescado, ora por excesso de pescado, sem meios de escoamento no mercado, na lutava pela sobrevivência. Importa reter este aspecto, para não se cair em divagações destituidas de verdade e de sentido!



Esta foto que se pressupõe  de finais do século XIX,  mostra-nos o morro da Torre do Tombo  com as «grutas» ou «furnas», então ainda soterradas pelas areias soltas acumuladas pelo vento que cobriam o morro até grande altura.  Só mais para diante desde as instalações d a firma Morgado & Morgado, de concessão régia, mais tarde propriedade de João Martins Pereira, havia outro grupo de pescarias, no sítio chamado "Pedras", propriedade de algumas familias antigas de Moçâmedes, familia Bauleth, Almeida, entre outras. Iam quase até â ponta do Pau do Sul ou Noronha, e como não havia acesso a pé tinha ser de barrco que se chegava lá.
 
Existem escritos dos quais existem cópias no arquivo da Câmara Municipal de Moçâmedes que revelam que três moradores da povoação, em 1858, se lembraram de o desentulhar e de reproduzir as "inscrições". Nesses escritos encontravam-se descritas as inscrições, tal como Pinheiro Furtado as destacara num ofício, datado de 4 de Outubro de 1785, dirigido ao Capitão General de Angola, Barão de Mossâmedes, onde referia que as mesmas estavam datadas desde 1645 a 1770. Não foi, porém referida inscrição de 1641. A este respeito consulte-se as Memórias «Histórico-Estatísticas de Brito Aranha.



Mais uma foto do morro da Torre do Tombo, onde foram encontradas as «grutas» ou «furnas»  e as célebres «inscrições» , e onde surgiram as primeiras e rudimentares pescarias demolidas em 1954, para darem lugar ao cais acostável e à Avenida marginal, sem que os pescadores-proprietários recebessem quaisquer indemnizações, numa terra que tinha na pesca a base da sua economia. Aqui já podemos ver algumas grutas ou furnas a descoberto. Ficavam contudo situadas muito acima do nível do mar, e da base do mesmo morro.

Esta foto retrata a mesma zona das fotos anteriores, embora tirada de sul para norte. O morro de facto apresentava um aspecto desolador.



 Clicar sobre esta foto para ampliar.
Clicar sobre o Postal. É uma foto panorâmica



Esta foto mostra-nos várias "inscrições", de entre as quais  ÍNDIA e SADO. Ainda que possam parecer
"inscrições" forjadas e não reais, ou até mesmo retocadas na foto, a verdade é que os nomes ali impressos, INDIA e SADO, estão intimamente ligados à História de Moçâmedes.  

Sobre a odisseia dos madeirenses em terras de África poderá consultar mais dados AQUI  
 
A "inscrição" SADO remete-nos para a chegada a Moçâmedes, em Julho de 1857, do brigue assim designado, transportando consigo 12 alunos da Casa Pia de Lisboa, e uma colónia de 29 alemães. Iam com destino à colonização do planalto da Huíla, as Terras Altas de Mossâmedes, como eram designadas, sob o patrocínio do General Sá da Bandeira ( o paladino da abolição do tráfico de escravos, por decreto de 12 de Dezembro de 1836), e com a recomendação ao Governador para que constituissem com eles uma aldeia que deveria denominar-se "KRUSS", apelido do contratador.   Este grupo, 16 dias após ter desembarcado em Moçâmedes, marchou rumo ao planalto durante 7 dias, com paragem de 2 dias no Bumbo, de 22 de Junho de 1957, segundo informação de Francisco Godinho Cabral de Melo. Acabou por desaparecer sem deixar vestígios, segundo  Pereira do Nascimento (in "O Distrito de Mossamedes"), ou como refere Ponce de Leão no artº n. 4 do Jornal de Mossâmedes:  "Esfacelou-se pelos erros da sua organização"  (...), adiantando que: "os alemães desgostosos perante os insucessos no interior acabaram por se estabelecer em Mossâmedes onde prestaram relevantes serviços". Sobre este aspecto resta saber que relevantes serviços foram esses. 
 
Consultando o Boletim do Conselho Ultramarino: "Legislação Novissima", Volume 3 By Portugal, Conselho Ultramarino, podemos ver a lista dos nomes colonos alemães, bem como outros dados alusivos ao assunto, que por ser extensa não colocaremos aqui,mas vai o link para o assunto no blogue Mossâmedes do Antigamente para quem estiver interessado em aprofundar:    https://mossamedes-do-antigamente.blogspot.com/2007/05/componentes-da-colonia-alema-chegados.html


Quanto à "inscrição" ÍNDIA, esta remete-nos para a chegada a Moçâmedes, em 19 de Novembro de 1884, do navio com aquele nome, que  largara do Funchal, na Ilha da Madeira, a 18 de Outubro desse ano, carregando no bojo mais de duas centenas de madeirenses, incluindo homens, mulheres e crianças e  mais uma criança, entretanto nascida a bordo, tendo por destino o planalto da Huila.  Chegara-se à conclusão na metrópole que toda tentativa em colonizar redundaria em fracesso, excepto fossem os contingentes constituidos por famílias completas e não apenas homens sós, na maioria aventureiros, e pior que tudo com degredados.

Ora, era após a chegada dos luso-brasileiros a Moçâmedes , nos anos 1849 e 1850,  o primeiro contingente de europeus que ia dar início ao povoamento branco das "Terras Altas  de Mossâmedes", concretizando um projecto de colonização organizada, numa época de grande concorrência e de pressão internacional, enquanto na Europa decorria a Conferência de Berlim (1884-1885), cujo objectivo foi a definição das regras para a "partilha de África" entre potências industrializadas, carentes de matérias primas, mão de obra barata e mercados consumidores. Por essa altura o direito histórico que Portugal considerava o garante da perpetuação da sua permanência por terras de África já nada representava, impunha-se  a ocupação efectiva, ou a perda dos territórios para outra potência em condições de o expllorar e desenvolver.

Dava-se assim início à colonização europeia das terras de Moçâmedes, a sul de Benguela, uma precária colonização que por muito tempo esteve aquém da concretização do sonho do Visconde e General de Sá da Bandeira,  o liberal progressista que, aproveitando-se de uma conjuntura favorável, assinou e mandou publicar em    12 de Dezembro de 1836, o Decreto da abolição do tráfico de escravos, inaugurando um novo paradigma colonial de fixação e desenvolvimento para as colónias africanas. Mas a colonização iria marcar passo,  excepto a colonização de Moçâmedes a pedido de um grupo de portugueses a residir em Pernambuco, Brasil, que estavam sendo maltratados e pediram a Portugal que os transferisse para Moçâmedes, e seriam os imperativos saidos da Conferência de Berlim  (1884-5), que iriam resultar em alguns passos mais rumo à ocupação efectiva das terras do sul de Angola, face à cobiça estrangeira, essencialmenteda parte dos alemães do Sudoeste Africano, e mesmo dos ingleses, que a ocupação efectiva passou a ser vista como uma prioridade.   Por esta altura as famílias portuguesas preferiam  continuar a emigrar para o Brasil, de onde, na qualidade de emigrantes podiam enviar para aas familias na metrópole as suas transferências de dinheiro; a África era vista como um lugar doentio, um cemitério para europeus que  em pouco tempo ali perdiam a vida, dizimadas pelo paludismo, malária, doença do sono, etc., que por lá livremente campeavam. Mas no parlamento metropolitano  discutia-se também que havia que travar a emigração porque Portugal precisava de gente para si mesmo, o Alentejo estava por povoar. E quanto a desviar a rumo da migração para África, que tal seria errado uma vez que do Brasil independente atrvés das transferências para as familias a metrópole arrecadava divisas. essenciais à sua economia. A verdade é que o  recurso a degredados, a exemplo da Austrália, Guianas, etc, já não era viável, tal como acontecera em tempos atrás, com gente não grata a cumprir as mais diversas penas, escória indesejada, cuja maioria por lá ficou, alguns envolvidos no tráfico de escravos, outros até servidores do estado se tornaram, tal era a carência de gentes lusas. Em 1864, os degredados somavam praticamente um terço da população branca de Angola, e deram mau nome à colonização. Outros uniram-se a africanas, constituíram as célebres famílias criôlas, engajadas no tráfico de escravos, que abolido em 1836, e posteriormente perseguido, passou a fazer-se na clandestinidade até à aabolição definitiva, em 1869.
 
 Desde o início da colonização de Moçâmedes  começava a ser difundida a ideia da benignidade do clima naquelas paragens do sul de Angola e interior próximo a explorar, foi quando avançaram as  expedição de Serpa Pinto, em 1869, ao Zambeze, e as  de Roberto Ivens e de Hermenegildo Capelo, em 1877,  entre Angola e a  Contra-Costa, sob os auspícios da Sociedade de Geografia de Lisboa, fundada em 1875, onde colheram um conjunto de registos geográficos, cartográficos e etnográficos, com intenções políticas implícitas e bem definidas. Por essa altura a ocupação portuguesa encontrava-se reduzida ainda a pequenos núcleos instalados nas cidades litorâneas de Luanda, Benguela e Moçâmedes.


MEMÓRIAS COM HISTÓRIA



As "grutas" ou "furnas" dos meus avós


Deixo aqui algumas das memórias ainda vivas e claras que possuo de momentos vividos na minha infância e na minha adolescência, intimamente ligados a este histórico local.  Essas memórias tornaram-se mais transparentes quando deparei na net com esta foto há tanto desejada e finalmente conseguida,  a foto das "grutas" ou "furnas" que pertenceram à pescaria dos meus avós, situadas no morro da Torre do Tombo, em Moçâmedes, Angola.

Embora a foto não  mostre na íntegra aquilo que de facto eram estas  muito propaladas "grutas" ou "furnas", uma vez que apenas nos mostra uma parte da fachada, já em estado de degradação, fica-se com uma ideia do seu exterior, da porta da entrada, das janelas para o exterior, que eram várias, bem como do troço de escadas às quais tínhamos acesso por um corredor, entre dois quartos em adobe que existiam no exterior, e que serviam de apoio à pescaria, aqui já sem reboco e em estado lastimável, como podemos ver nas laterais da fotografia.

 
A tia Lídia e meu irmão à porta da entrada das "grutas" ou "furnas" do morro da Torre do Tombo. Por esta altura, devido à salinidade do mar já começava a verificar.se um certo grau de desgaste na pintura exterior. Estava-se em 1940, o ano em que nasci.
                                  

Foi pois  com um certo requinte que meus avós transformaram numa casa de habitação essas 3  "grutas" ou "furnas", ao ponto de quem estivesse lá dentro não tivesse a mínima sensação de enclausuramento, e se sentisse como se estivesse no interior de uma habitação normal. E como as 3 "grutas" ou "furnas" ficavam num plano elevado em relação à base do morro, tiveram que construir uma escadaria em cimento para que a elas se tivesse acesso. A verdade é que foram transformadas numa confortável habitação, com compartimentos de paredes rebocadas, caiadas, pintadas, quartos interligados entre si, ventilados através de janelas envidraçadas para o exterior, porta de entrada principal à qual se podia aceder  através daquele troço de escadas em cimento, que a foto permite ver. O tecto era alto, em abóbada, e tal como as paredes da entrada, encontrava-se rebocado e caiado de branco. Num dos compartimentos ficava uma sala comum, devidamente mobilada, com mesas, cadeiras, louceiro, um sofá onde se podia dormir, e pendurados nas paredes  encontravam-se um quadro e um relógio. Noutro compartimento ficava o quarto de dormir,  com uma cama de casal em ferro, duas mesas de cabeceira, uma cómoda e um guarda roupa. No terceiro compartimento ficava uma rudimentar casa de banho, com chuveiro tipo balde de fabrico artesanal, feito de zinco ou latão, daqueles de colocar a água dentro, subir e descer na direcção do tecto, com a ajuda  de uma corda, onde ficava pendurado, uma vez que na Moçâmedes da então era o que havia. Até porque na zona a água canalizada chegou já os anos 1950 iam avançados, e nem cacimbas havia de onde a retirar, tendo que ser a mesma acarretada em baldes, e levada para as habitações em barris puxados por  cordas, que rolavam pelo chão, a partir de chafarizes que existiam a considerável distância. Isto já em meados do século XX. As populações estavam abandonadas à sua sorte, não havia créditos bancários, vivia-se essencialmente da pesca e as crises no sector eram frequentes e tinham reflexos em toda a vida citadina. Quanto à cozinha, esta ficava num cantinho de um dos compartimentos da «casa/furna/gruta», junto da janela, e compunha-se de um  fogão a petróleo, havendo também, no lado de fora, após descidas as escadas,  um forno em tijolo e barro, de formato arredondado, tipo antigo forno de padaria, com porta de ferro de abrir e fechar, onde se podia cozer o pão, os bolos, etc etc. Minha avó, natural de Olhão era perita nos famosos "bolos de folha", que no Natal não faltavam nas boas mesas, e eram feitos em catadupa.  Lembro-me que na parte de fora havia uns  quantos vasos com flores que davam alguma alegria àquele ambiente árido e cinzento, e que meus avós tinham plantado nas proximidades uma oliveira, tipo de árvore que se dá bem em Moçàmedes, mas devido à salinidade e ao tipo de areia solta do terreno, nunca medrou. Em Moçâmedes dava-se também muito bem a videira. Aliás, lá para as várzeas do rio Bero, onde ficam as Hortas, era só plantar..., mas Angola tinha que ser consumidora dos produtos que vinham feitos da Metrópole e não produtora. Talvez uma casuarina fosse a solução naquela terra árida e ressequida do Morro da Torre do Tombo, onde nada medrava. Na verdade parece incrível que os meus avós tivessem conseguido  aquela verdadeira obra de arte, facilitada porque entre 1935/1940, o meu avô tinha recebido uma pequena herança de família, vinda da Metrópole, e resolveram investir no seu arranjo, embora tivessem a morada de família numa casa grande e de boa construção para a época, no Bairro da Torre do Tombo, lá para os lados de uma pedreira que existia perto do local onde foi mais tarde construída a Escola Industrial e Comercial Infante D. Henrique, de Moçâmedes.  É que as «grutas» ou «furnas» ficavam próximas dos armazéns do Sindicato da Pesca e seus Derivados do Distrito de Moçâmedes, onde meu avô trabalhava, ali ao lado da fábrica de conservas Sociedade Oceânica do Sul, S.O.S, a ex-Fábrica Africana,  e  ter uma casa ali facilitava a gestão do tempo.  Dava-lhe jeito porque ficava junto da pescaria, onde trabalhavam «quimbares», gente africana aportuguesa, descendente de antigos escravos, que se dedicavam voluntariamente à pesca à linha numa embarcação, e ganhavam uma percentagem do pescado, com prévio acordo.  Sei que era ali que ele almoçava, e que dormia a sesta, regressando à casa grande da Torre do Tombo ao fim do dia. Soube que chegou a estar arrendada e que pagava impostos ao Estado.
 
Resta referir que estas «grutas» ou «furnas», pela forma cuidada em que se encontravam, eram motivo de curiosidade de altos dignitários do nação, no decurso das suas visitas a Moçâmedes, que  não deixavam de as visitar, conduzidos para ali pelo grande amigo de Moçâmedes, o veterinário Dr. Carlos Carneiro. Embora não venha referido no programa oficial da visita a Moçâmedes do Presidente Óscar Fragoso Carmona, em 1938, estas "grutas" ou "furnas" foram visitadas por sua esposa e filha, Maria do Carmo Fragoso Carmona e Cesaltina Carmona Silva e Costa, que ali se deslocaram acompanhadas de vários elementos masculinos e femininos da comitiva presidencial, de entre os quais, Maria do Carmo Vieira Machado, esposa do Ministro das Colónias, Francisco José Vieira Machado.  Antes porém já havia sido visitada por um outro elemento da Comitiva, o General Amílcar Mota, que ali se deslocara no automóvel de Mário de Sousa  (proprietário de uma oficina de reparação de automóveis na Rua dos Pescadores e de um táxi), para combinar o momento da referida visita, que incluiu um brinde. Mário de Sousa era quem sempre disponibilizava o transporte para este tipo de deslocações, nesse tempo em que eram escassos os automóveis na cidade de Moçâmedes. 
 
Muitas destas recordações, que fazem parte da História de Moçâmedes, foram-me transmitidas oralmente pela minha tia Carminha (Maria do Carmo), que à época tinha apenas 12 anos de idade, e que por ter o mesmo nome que Maria do Carmo Fragoso Carmona, esposa do Presidente da República, foi por esta convidada para prosseguir os estudos  na Metrópole, internada num colégio, sonho que não realizou porque a família a tal não autorizou, com grande pena da tia. Ainda a respeito desta tia que me foi passando memórias suas quando estávamos juntas, não quero deixar de referir que ela chegou a ver ainda algumas dessas inscrições, que até podiam ser das mais recentes, e que igualmente se apagaram.

Convém ainda referir que as «grutas» ou furnas» dos meus avós se encontravam naquele tempo registadas na Conservatória de Moçâmedes e pagavam imposto ao Estado. Aliás quando o  Presidente Carmona visitou Moçâmedes, em 1838, meu avó apresentou uma reclamação a esse respeito, considerando que pagava indevidamente imposto  por aquele bem que encontrou completamente abandonado,  inserido numa zona não urbanizada, completamente entregue aos proprietários das pescarias, na maioria pescadores, tendo eles que abrir carreiros, uma vez que sequer uma estrada digna ali havia, por onde pudessem passar.  Esse facto encontrei num dos registos oficiais relativos à citada visita presidencial.

Por esta altura, como mostram as fotos colocadas atrás, não havia estrada que permitisse avançar pela base do morro até às últimas pescarias que ficavam próximas da Ponta do Noronha, ou Ponta do  Pau do Sul, existia apenas um carreiro através do qual se ia avançando, a pé, de pescaria em pescaria, uma vez que o morro ia até ao mar.  E esse carreiro foi em conjunto mandado abrir pelos proprietários das pescarias da zona que tinham solicitado o trabalho a degredados de então que se encontravam a cumprir penas na Fortaleza, sendo mais tarde esse mesmo carreiro alargado na zona próxima do Sindicato e da Fábrica Africana, mais tarde S.O.S.  E foi assim até à construção da Avenida Marginal e do Cais Comercial, iniciadas em 1954, que levou ao desmantelamento  das primitivas pescarias. 
 
Eram precários os meios de que dispunham os pescadores e os industriais-pescadores das primitivas pescarias da Torre do Tombo. Apenas o troço intermédio entre a Fábrica de Conservas S.O.S e os Armazéns do Sindicato da Pesca, mais tarde Grémio da Pesca, que ficava próximo da pescaria dos meus avós, pôde beneficiar de uma estrada de terra batida que permitia a um veículo passar. Não faltavam reclamações das gentes da terra sempre que um alto dignatário da Nação a visitava. Se Angola durante séculos não fora mais que um entreposto para o tráfico de escravos dirigido essencialmente para o Brasil, após a independência desta colónia, e a abolição, manteve-se paralisada no seu desenvolvimento até bem dentro do século XIX, séculos agitado em Portugal, que não permitiu a paz necessária para legislar. E quando por força das determinações saídas da Conferência de Berlim e da "Partilha da África" pelas potencias europeias industrializadas, que obrigavam Portugal efectivamente a colonizar, ou a ceder as colónias a outras potência em condições de o fazer,  a colonização continuou a marcar passo. Não convinha deslocar o fluxo da emigração que corria na direcção do Brasil de onde vinham as divisas dos emigrantes, nem convinha despovoar Portugal num tempo em que o Alentejo estava por povoar, e a colonização com recurso a degredados começava a ser contestada como um factor de maus exemplos para os povos colonizados.  E assim se chegou à 1ª República, que apesar das vontades, foi um tempo de crises e nada resultou,  e na fase em que decorreu a 1ª Grande Guerra de 1914-18, Angola estagnou. Entre 1939-45 veio a 2ª Grande Guerra, e  de novo tudo paralisou. Com os seus interesses voltados para fora, de onde vinham os proventos que alimentavam desde os velhos tempos uma corte perdulária, enquanto o povo, pobre e analfabeto não medrava se não emigrando, Portugal foi-se esquecendo de si, sequer se industrializou, Distanciando-se de uma intervenção directa nos empreendimentos industriais, o que, na época, podia ser até uma disposição favorável, o poder centralizado n não providenciou, as condições para que outros pudessem concorrer para o seu adiantamento. Incapaz de gerir e controlar o território nacional, de chegar junto das populações, vivendo das receitas do Império e das alfândegas, não tinha, por exemplo, nem os meios nem as motivações para construir estradas, abrir ou reparar caminhos, rasgar no País as vias da circulação interior. O problema dos transportes continuaria, assim, por muito tempo ainda, a afligir a economia portuguesa. E as colónias pagaram por tudo isso. persistindo num sistema de governação que via num mercantismo tardio, e na centralização, a única saída. Foi a partir da segunda metade do século XX que Angola entrou numa fase decisiva do seu desenvolvimento, de que cidades como Moçâmedes muito beneficiou. Em toda a primeira metade do século XX, a precaridade dos meios era enorme, e as ajudas estatais quase nulas. 
 
Terminada a 2ª Grande Guerra em 1945, com a Europa industrializada a refazer-se  rapidamente, 9 anos depois, em 1954, começaram finalmente as obras do cais acostável de Moçâmedes. Num pais dependente das importações, era enorme a dependência de materiais voltados para o erguer de toda a espécie das infraestruturas necessárias, fossem pontes, linhas férreas,  portos marítimos, etc etc., e tudo paralisava quando as fábricas europeias, em tempo de guerras, se voltavam para a industria do armamento.



 Eu, e as velhas pescarias e a Avenida Felner, numa foto tirada pelo meu irmão, em 1955 do cimo do «morro» da Torre do Tombo, precisamente por cima do sitio onde ficavam  "grutas" ou "furnas" e  a pescaria dos meus avós



Nós, junto do morro da Torre do Tombo, em 1955/6. Por esta altura tinha terminado a fase das terraplanagens para as obras da marginal e do cais acostável, e partia-se para a fase seguinte. Ao fundo, à esq., vêem-se algumas "furnas" ou "grutas" a descoberto



 
  Com amigas junto das tarimbas ou giraus, onde secavam o peixe




Com a prima  Margareth rumando a caminho de uma traineira de dimensões mais reduzidas (rapa), num pequeno barco a remos (chata)

  Enfim, uma paisagem da cor da areia, que me surge agora paupérrima e  triste, tal como era a «Mossâmedes do antigamente» aos olhos do poeta, conforme poema que se descreve a seguir:  


 Moçâmedes beijada pelo Deserto
 
"A velha ponte-cais

de traves carcomidas,
O morro triste,

 a antiga fortaleza...
O deserto a avançar sobre o mar
E a polvilhar a cidade pobre

 da sua
poeira amarela...
O deserto a sepultar a cidade pobre..."

(In "Poemas Imperfeitos" de
Joaquim Paço D´Arcos. (1)
 
(1) Era assim que o poeta, romancista, dramaturgo, ensaísta, premiado diversas vezes , Joaquim Paço D´Arcos via Moçâmedes. Paço D'Arcos enquanto criança esteve em Moçâmedes, entre de 1912 e 1914, com seu pai que foi Governador do Distrito.  Não admira, este poema do início do século XIX, tempo de estagnação no  desenvolvimento de Moçâmedes e de Angola,  tempos de total anarquia, tendo muitos  portugueses resolvido abandonar o território. E durante a l República portuguesa, a situação não foi melhor. Aliás, Portugal passou a olhar Angola como a nova "Joia da Corôa após a perda do Brasil, independente em 1822, mas não tinha condições para avançar com grandes realizaçóes guerras, confrontos, avanços e recuos ões. Em toda a 1ª metade do sec xix , até 1851,  a situação em Portugal foi de confrontos, guerras, avanços e recuos, falta ed condições para legislar. Em 1875, a fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa, seguindo o exemplo de outras congéneres europeias, veio acompanhada de algumas boas vontades, mas não foi suficiente. A Conferência de Berlim (1884-5) veio impôr uma nova ordem, e Portugal foi obrigado que até então ocupava nas colónias uma faixa estreita  costeira do território, praticamente sem penetração, para o interior, viu.se obrigado a uma ocupação efectiva e ao seu desenvolvimento, perdendo o direito histórico todo o valor. Foi então que com muita dificuldade se procurou fixar as bases de uma nova administração,  promover o povoamento com famílias portuguesas e levar a cabo o desenvolvimento económico da colónia. Mas este foi um tempo em Angola preenchido com preocupações ligadas à demarcação da fronteira sul cobiçada pelos alemães. Salienta-se Norton de Matos, que em 1912 havia reacendido a esperança de um tempo novo, mas a fronteira sul ainda por demarcar e a revolta dos autóctones eram uma realidade do que resultou a última fase das Campanhas Militares do Sul de Angola, que fizeram de Moçâmedes o seu porto de desembarque. 

Muito haveria mais para dizer...

MariaNJardim
Texto com "Direitos de Autor"

(1) "Angra", a designação do lugar onde viria a ser erigida a cidade de Moçâmedes..............................................................................................


 As pescarias até meados de 1950



AINDA SOBRE AS «FURNAS» ou «GRUTAS», e as «INSCRIÇÕES» DO MORRO DA TORRE DO TOMBO.
O que resta das mesmas e o significado histórico...





Na verdade conheci este local como às minhas mãos, porque era ali que ficavam as "grutas" ou "furnas" dos meus avós, a sua pescaria e a pescaria dos meus pais, lá mais para diante já próximo da Ponta do Pau do Sul, num local onde apenas se podia penetrar a pé. E em tempos mais recuados, apenas de barco.  E também porque foi em Moçâmedes que nasceram meus pais, que nasci, que  casei e que nasceram os meus filhos. 
 
Na infância trepei algumas vezes este morro, de cima baixo e de baixo para cima, entrei em algumas dessas «grutas» ou «furnas», que na sua maior parte serviam de minúsculos armazéns às pescarias, onde se guardavam os apetrechos, redes, anzóis, tambores de alcatrão, bidões de óleo, caixotes, latas de tinta, etc etc. Nunca pensei que fossem tantas! 

Na adolescência assisti às demolições das pescarias que circundavam a falésia  da Torre do Tombo, demolições essas que deixaram as famosas «grutas» ou «furnas» até então escondidas pelas pescarias, a descoberto,  e mais expostas à erosão do tempo, e à impiedosa mão do homem. Lamentavelmente, não me lembro de lhes ter dado alguma importância em termos de História.   Não admira! No meu tempo de Escola a matéria que nos era ministrada estava mais voltada para o conhecimento dos rios de Portugal, dos afluentes e confluentes, dos montes,  serras e montanhas, das dinastias sucessivas desde D, Afonso Henriques até à Implantação da República, e pouco mais, não estimulava o gosto pela pesquisa, e nas livrarias da terra os livros à venda passavam pelo crivo da censura prévia, uma das características do regime.


Se é certo que a primeira grande insensibilidade registada contra este histórico local teve lugar por ocasião da construção das primitivas pescarias, por famílias dedicadas à pesca do atum,  que fizeram desaparecer as «inscrições» mais antigas, gravadas na rocha branda do morro da «Torre do Tombo», conforme nos diz Manuel Júlio de Mendonça Torres, autor da obra O DISTRITO DE MOÇÂMEDES, que avança também que Brito Aranha, nas suas Memórias Histórico-Estatísticas (1883), refere que os Governadores Fernando da Costa Leal (1854-1859 e 1863-1866) e José Joaquim da Graça (1866-1870), deixaram, igualmente, lembrança de si naquele morro,  é também certo que outras mais recentes intervenções e insensibilidades acabaram por fazer desaparecer aquilo que restava de histórico neste local. quando, com a demolição das pescarias, na década de 1950, por força da construção do cais acostável, na fase dos aterros e terraplanagens, foram retiradas do morro, sem só nem piedade, toneladas e toneladas de areia que desfiguraram a topografia do terreno.

Já alguém disse que um povo sem História é um povo sem memória que está fadado a cometer no presente e no futuro os mesmos erros do passado. A História é algo abrangente, ela está presente até no ar que respiramos. Então será que devemos esquecer que a velha "Angra do Negro" de Diogo Cão,  a «Mossungo Bitôto» para os povos indígenas da zona, foi em tempos remotos ponto de passagem dos primeiros navegantes e corsários, que nas suas navegações ao longo de séculos pelo vasto mundo  ali faziam "aguada", ou seja, abasteciam-se da água do Bero, e descansavam antes de prosseguir viagem?  E que foi junto a essas «furnas» ou «grutas» que foram encontradas impressas «inscrições» de incalculável valor histórico, datadas desde 1645 a 1770, e outras mais recentes que não chegaram aos nossos dias?

Para além do historial que ficou para trás, essas «furnas» ou «grutas» serviram também de primeira morada aos pioneiros algarvios de Olhão que começaram a chegar a Moçâmedes a partir de 1861,  sem quaisquer ajudas dos Estado, fazendo-se transportar de conta própria, em caíques, palhabotes e barcos à vela, e que a despeito de muitas e variadíssimas contrariedades, ali se foram estabelecendo, construindo as suas primeiras habitações, lançando ao mar as primeiras redes, e dando início ao desenvolvimento de uma nova era para o Distrito, cuja riqueza seria proporcionada pelo mar. Eles levaram para Moçâmedes o seu saber de experiência feito, e com eles anzóis, redes, e tantos outros apetrechos, barcos, etc, que transmitiram a outro povos.

Trata-se pois de um verdadeiro «ex-libris», faz parte da História  de Angola, da História de Portugal e da História Universal. Um lugar pouco reconhecido e estimado, quer antes quer após a independência de Angola,  actualmente em processo de acelerada  degradação, bastando comparar o aspecto de então com o seu aspecto actual.




O bairro da Torre do Tombo na zona mais a sul, já a subir para o Canjeque e Praia Amélia, podendo ver-se as casas de traça portuguesa de João Duarte, outro dos ex-libris da cidade em estado decadente. 

Prossigamos com as nossas recordações sobre este histórico e mal cuidado local.  Em 24 de Junho de 1954, no decurso de uma visita a Moçâmedes do Presidente da República, General Craveiro Lopes, tiveram início as obras da marginal e do cais acostável. E em 24 de Maio de 1957 o 1º troço era inaugurado, com a presença do Governador Geral.




24 de Maio de 1957. Devidamente engalanado, o paquete "Uije" aproxima-se  do cais e prepara-se para encostrar...


 24 de Maio de 1957. Momentos da inauguração, com a presença de alunos do colégio e das escolas, futebolistas e basquetebolistas dos clubes da cidade, e povo em geral.




24 de Maio de 1957. O paquele "Uige" e a multidão, vistos do cimo do morro da Torre do Tombo. 
 

24 de Maio de 1957. De mais perto, o paquete e a multidão. As alunas do Colégio de Nossa Senhora de Fátima de Moçâmedes abrem alas para o Governador passar. De entre outros reconhece-se Mário Guedes da Silva, Mário Rocha, e o professor Canedo. 24 de Maio de 1957.
  


24 de Maio de 1957. A aguardar a chegada do Governador Geral, o bispo da Diocese de Sá da Bandeira e elementos representativos das "forças vivas" da cidade


24 de Maio de 1957. O momento da entrega das chaves da cidade ao Governador Geral de Angola, Tenente Coronel Horácio José de Sá Viana Rebelo, pela basquetebolista do Ginásio Clube da Torre do Tombo, Celísia Calão. A descer a escada do navio, de fato escuro, o então Governador do Distrito de Moçâmedes, Dr.Nunes da Ponte


A apresentação de cumprimentos de boas vindas ao Governador Geral de Angola, por elementos representativas das "Forças Vivas" da cidade, ou seja, da esquerda para a direita, o Dr Mário Moreira de Almeida (médico), Raúl Radich Junior, Rui de Mendonça Torres, Abilio Simões da Silva e Virgílio Carvalho de Oliveira.





24.05.1957. O momento simbólico do descerramento da placa comemorativa da inauguração do 1º troço do cais do porto de Moçâmedes pelo Governador Geral de Angola, Tenente Coronel Horácio José de Sá Viana Rebelo.

 

Por baixo de um toldo erguido no cais, o Governador de Moçâmedes, Vasco Nunes da Ponte, entre o Governador Geral de Angola, Tenente Coronel Horácio José de Sá Viana Rebelo, e o Dr. Mário Moreira de Almeida (Médico), presidente da Câmara Municipal de Moçâmedes, procede à assinatura do auto da inauguração.



O Governador Geral de Angola,Tenente Coronel Horácio José de Sá Viana Rebelo, no topo da falésia, tendo a seu lado o Governador do Distrito de Moçâmedes, Vasco Nunes da Ponte. 




Finda a cerimónia, o cais vazio de gente... O paquete Uije descansa enquanto os visitantes e comitiva, forças vivas e povo se deslocam para outros pontos da cidade para  assistir a outras cerimónias. Na mesma data procedeu-se à inauguração do novo edifício-sede do Grémio dos Industrias da Pesca do Distrito de Moçâmedes, e ainda  à cerimónia da colocação da primeira pedra que deu início à construção do complexo desportivo do Sport Moçâmedes e Benfica, ambos os actos presididos pelo Governador Geral de Angola, Tenente Coronel Horácio José de Sá Viana Rebelo.



Panorâmica do cais e da baía no decurso das obras da construção  nesta 1ª fase das obras, em que grande número das primitivas pescarias ainda ali se encontravam. Não tardariam muito a ser demolidas. Com as terraplanagens, o morro sofreu vários desgastes e as "grutas" ou "furnas" igualmente. Posteriormente estas têm continuado a sofrer a erosão do tempo, e as consequências trazidas pela mão dos homens...




A construção do cais de Moçâmedes foi outorgada por contrato, a empreitada por 3 anos,  pelo Comandante Sarmento Rodrigues à firma adjudicatária Engº Rafael del Pino e Moreno.

 Foi assim que se apresentou à noite a baía de Moçâmedes quando da inauguração da Avenida Marginal em 1963. Fotos cedidas por Vitor Torres
O aspecto actual das «grutas» ou «furnas»



Termino com este texto carregado de significado, escrito pelo primeiro sociólogo angolano, Mário Pinto de Andrade, fundador  do MPLA, que lembra a necessidade quanto possível da preservação deste histórico local, que já não guarda as velhas «inscrições» de grande valor histórico, mas que ainda pode oferecer à cidade, a Angola, e ao mundo, com a preservação das "grutas" ou "furnas" que restam, testemunhos da história desse mesmo Mundo.


"...A cultura compreende tudo o que é socialmente herdado ou transmitido, o seu domínio engloba uma série de factos dos mais diferentes: crenças, conhecimentos, literatura (muitas vezes tão rica, então sob a forma oral, entre os povos sem escrita) são elementos culturais do mesmo modo que a linguagem ou qualquer outro sistema de símbolos (emblemas religiosos, por exemplo) que é o seu veículo, regras de parentesco, sistemas de educação, formas de governo e todos os outros modos segundo os quais se ordenam as relações sociais são igualmente culturais; gestos, atitudes do corpo, até mesmo as expressões do rosto, provêm da cultura, sendo em larga escala coisas socialmente adquiridas, por via da educação ou da imitação; tipos de habitação ou de vestuário, instrumentos de trabalho, objectos de trabalho, objectos fabricados e objectos de arte, sempre tradicionais, pelo menos em algum grau - representam, entre outros elementos, a cultura sob o seu objecto material»   in Mário Pinto de Andrade Do Preconceito Racial e da Miscigenação [inédito].





(1) Era assim que o poeta, romancista, dramaturgo, ensaísta, premiado diversas vezes , Joaquim Paço D´Arcos via Moçâmedes. Paço D'Arcos enquanto criança esteve em Moçâmedes, entre de 1912 e 1914, com seu pai que foi Governador do Distrito.  Não admira, este poema do início do século XIX, tempo de estagnação no  desenvolvimento de Moçâmedes e de Angola,  tempos de total anarquia, tendo muitos  portugueses resolvido abandonar o território. E durante a l República portuguesa, a situação não foi melhor. Aliás, Portugal passou a olhar Angola como a nova "Joia da Corôa após a perda do Brasil, independente em 1822, mas tinha condições para avançar com grandes realizações. A fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa  em 1875, veio acompanhada de algumas boas vontades mas não foi suficiente. A Conferência de Berlim (1884-5) veio impôr uma nova ordem, e Portugal foi obrigado a uma ocupação efectiva das colónias e ao seu desenvolvimento, perdendo o direito histórico todo o valor. Foi então que com muita dificuldade se procurou fixar as bases de uma nova administração,  promover o povoamento com famílias portuguesas e levar a cabo o desenvolvimento económico da colónia. Mas este foi um tempo em Angola preenchido com preocupações ligadas à demarcação da fronteira sul cobiçada pelos alemães. Salienta-se Norton de Matos, que em 1912 havia reacendido a esperança de um tempo novo, mas a fronteira sul ainda por demarcar e a revolta dos autóctones eram uma realidade do que resultou a última fase das Campanhas Militares do Sul de Angola, que fizeram de Moçâmedes o seu porto de desembarque. 

Muito haveria mais para dizer...




MARIANJARDIM 
 
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