Os transportes nos primórdios da colonização de Moçâmedes
Os transportes e as vias de comunicação constituem factores essenciais do desenvolvimento de um território, e desde logo em Moçâmedes, com a chegada dos primeiros colonos de Pernambuco, Brasil, estes jogaram mão a meios de transporte práticos que facilitassem a deslocação de pessoas e de mercadorias, para além dos transportes por via marítima já existentes, ainda que irregulares e
demorados, que antes da sua chegada estabeleciam ligações
internas entre os portos de Angola, bem como destes com os portos de
Portugal e do Brasil.
O boi-cavalo
A utilização do boi-cavalo como meio de transporte e de tracção animal foi uma prática comum a muitos povos de África, e foi seguida pelos
colonos de Moçâmedes nesses tempos iniciais, em que se viam obrigados
a percorrer grandes distancias, sem terem acesso a cavalos ou a outros
meios de transporte, substituindo-os pelos bois. Bois-cavalos eram utilizados nas suas deslocações às hortas na labuta agrícola, como vem citado em algumas obras da época, existindo menções à utilização por Bernardino
Freire de Figueiredo Abreu e Castro, o chefe da 1ª colónia de 1849, nas suas deslocações à Quinta dos Cavaleiros.
A
saber, aquando da chegada de Pernambuco dos primeiros colonos, já se
utilizava o boi-cavalo, como se pode concluir da crónica entusiasmada e
radiante escrita por Bernardino de Figueiredo de Abreu e Castro, em 28
de Outubro de 1849, por ocasião da distribuição e medição dos terrenos que as
autoridades, sob o rigor do sol, percorriam montados em
bois-cavalos, e que reproduzimos parcialmente:
“[...]
lá se vê um carro carregado de caibros; há ali pretos conduzindo junco
e tábuas; acolá as autoridades, montadas em bois, e medindo os
terrenos; noutra parte se quebra pedra, que se vai carregando
juntamente com o barro [...]” In BOLETIM do Governo Geral da Província de Angola nº 218 (1848-12-01).
Uma
outra prova da crescente utilização do boi-cavalo é dada por um artigo
inserto no Jornal «Mossamedes», nove meses antes da chegada à vila de
mais de duas centenas de colonos madeirenses, destinados ao povoamento
do vizinho planalto da Huíla, e do qual transcrevemos o essencial:
“[...]
no período embrionário da colonização, Francisco da Maia Barreto, [...]
se dirigia, de véspera, escarranchado no seu boi-cavalo cor de rato,
até às hortas e ao Quipola [...] e, no dia seguinte, entrava na vila
[...] sob espessa nuvem de poeira, à frente dum esquadrão de trinta a
quarenta cavaleiros [...]
montados em belos e ligeiros bois-cavalos”. In PONCE DE LEÃO, Francisco Augusto, Jornal Mossamedes, nº 45 (20 Fev. 1884).
E Ponce Leão escrevia no Jornal de Mossâmedes em 1884 que
Francisco Maia Barreto, da 1ª colónia de 1849, sempre que havia eleições
dirigia-se de véspera escarchado no seu boi-cavalo até às Hortas e
Quipola, onde arengava profusamente aos agricultores para obter votação
em determinada lista, e no dia seguinte entrava na vila com ar
triunfante sob espessa nuvem de poeira, à frente de um esquadrão de 30 a
40 cavaleiros que seriam, como supunha, outros tantos votantes da mesma
lista, montados em belos e ligeiros bois-cavalos que abundavam na
região.
Conclui-se pois, que o uso do boi-cavalo como transporte terrestre é anterior ao
desembarque dos colonos vindos do Brasil, num tempo em que era
inexistente o gado asinino, era mais frequente o de tracção ou de
montada e, ao que se apurou, já era utilizada pelos autóctones. Entre
1854 e 1859, o número de bois-cavalo quase triplicou, passando de 31
para 78, facto que indicia a escassez de quaisquer outras alternativas,
susceptíveis de dar resposta ao crescimento da população e ao
escoamento das produções que progrediam em zonas cada vez mais afastadas
da vila e do porto.
A designação
boi-cavalo causava uma certa sensação de surpresa no visitante que,
chegado à povoação, se persuadia de ir ver um animal de nova espécie,
produto híbrido da raça bovina e cavalar, quando na realidade se tratava
de um boi, como tantos outros.
Segue um texto a este respeito retirado do livro "45 dias em Angola":
"...Não é pelo aspecto da Villa e do terreno, que a circunda, que se
deve ajuizar da importância de Mossamedes como colónia agricola: para
isso teriamos de nos entranharmos para o interior; mas como aqui viemos
só para nos restabelecermos de um incommodo febril, que nos accommeteu
em Loanda, contentar-nos-hemos de montar um boi-cavallo, e ir até ás
Hortas e à quinta dos Cavalleiros. Este nome de — boi-cavallo — produz
certa sensação no viajante, que se persuade ir ver um animal de nova
espécie, producto hybrido da raça bovina e cavallar. Logo me desenganei
quando vi que o exemplar que me apresentaram nenhuma diferença fazia dos
outros bois. Como os colonos se viam obrigados a fazer grandes
digressões, e não tinham cavalgaduras, o que ainda hoje lhes acontece,
resolveram imitar o exemplo de muitos povos da costa, e do interior da
Africa, substituindo-as pelos bois. Quasi todos os proprietários da
Praia, principalmente os donos de quintas ou hortas, tem o seu
boi-cavallo. Escolhem de preferencia para esse effeito os bois mochos,
furam-lhes a membrana que separa as ventas, e introduzem n'esse furo uma
espécie de bridão de uma só peça, preso a uma cabeçada quasi igual à
dos cavallos, e por esse meio os governam e lhes reprimem os ímpetos. Um
sellote com retranca, ou sellim razo com rabicho, é o arreio ordinário
em que montam homens e senhoras. O gado que está affeito a este serviço
anda com uma velocidade pouco própria do — passo do boi — . Percorri
umas sete léguas n'esses bois, e a sua andadura não me pareceu peor do
que a de um cavallo; mas a espora e o chicote tem de trabalhar
continua-mente para lhes recordar o seu dever. Já que temos
cavalgaduras, vamos até ás Hortas, que é um passeio que quem vai a
Mossamedes não deve deixar de dar. "
Refere ainda o autor do
livro "45 Dias em Angola" , 1862, que quasi todos os proprietários da
"Praia", designação que os moradores davam à povoação de Moçâmedes,
principalmente os donos de quintas ou hortas, tinham o seu boi-cavalo,
escolhendo de preferência para esse efeito bois machos, furando-lhes a
membrana que separa as narinas e introduzindo no furo uma espécie de
bridão de uma só peça, preso a uma cabeçada quase idêntica à dos
cavalos, e por esse meio os orientam e lhes reprimem os ímpetos. Um
selote com retranca, ou selim raso com rabicho, é o arreio ordinário em
que montam homens e senhoras. O gado afeito a este serviço, andava com
uma velocidade pouco própria do passo do boi e, como refere o autor após
ter percorrido umas sete léguas nesses bois, a sua andadura não lhe
pareceu pior do que a de um cavalo, sendo contudo que a espora e o
chicote tem de trabalhar continuamente para os fazer avançar.

Na lateral da capela de Nossa Senhora do Quipola, vêem-se várias tipóias que transportavam peregrinos em tempos de romaria
Conforme «Anais do Município de
Moçâmedes», para além do boi-cavalo, de início o transporte utilizado
era a
machila, a tipoia, o riquexó, o camelo, ou melhor o dromedário
(este oriundo das Canárias e introduzido no Distrito por Joaquim de
Paiva Ferreira, componente da 1ª colónia vinda do Brasil em 1849), e
ainda as carroças introduzidas no sul de Angola pelos boeres, que
chegavam a ser puxados por quinze parelhas de bois e que vieram promover
uma verdadeira revolução nos transportes.
A machila,
uma espécie de maca curta, com 150 cm x 60 cm, com uma cadeirinha a
meio, conduzida aos ombros de dois machileiros ou carregadores pode ver-se também no desenho que segue. Nas viagens para o interior os colonos usavam normalmente a tipóia (vidé desenho) , que era constituída por um palanquim de rede ou de lona, para transportar pessoas. Destes dois últimos meios de transporte de pessoas, há muito desaparecidos de Angola, apresentamos um simples esboço gráfico, de modo a proporcionar uma imagem mais concreta.
Machila e tipóia já era comum entre nativos da região
Carregadores mondombes numa rua de Moçâmedes em finais do séc XIX
Mas não podemos esquecer os
carregadores africanos, esse meio de transporte humano que foi crucial
nas colónias de África e não só, naqueles tempos de carências totais, em
que a falta de transportes e de vias de comunicação entravavam o
desenvolvimento das regiões. Em Moçâmedes essa tarefa esteve entregue aos mondombes, um trabalho voluntário desses africanos da região do Dombe que emigraram para Moçâmedes, com a a colonização em busca de trabalho, havendo referencias a custos elevados difíceis de comportar e de como esses carregamentos entraram em crise com a chegada das carroças boeres. Foi então que mondombes aos poucos foram deixando Moçâmedes, recolhendo às suas terras no Dombe e região de Benguela de onde eram oriundos.
Carroça de estilo bóer puxada por uma
junta de bois, Carroças boers vieram revolucionar os transportes no
sul de Angola no ultimo quartel do séc xix.
Carroças boers numa das ruas de Moçâmedes, descarregando víveres
Com as carroças boers o transporte efectuado pelos carregadores africanos entram em recessão e a maioria abandonou a região de Moçâmedes e recolheu-se a região de Benguela de onde era oriundo. (2)
Os meios de transporte e as vias de
comunicação constituem factores determinantes do desenvolvimento de
qualquer povo, porém quando os primeiros colonos chegaram a Moçâmedes
nada tinham ao dispôr que lhes facilitasse a deslocação de pessoas e de
mercadorias, se não os meios atrás citados, Não fora a entrada pelo sul de Angola dos já referidos
boers, em 1880, que se estabeleceram na Humpata, os problemas seriam
muito maiores. (1)
Partida inaugural da Composição do CFM rumo ao Saco, em 29 de Setembro de 1905.
O Caminho de Ferro, uma das grandes
reivindicações dos colonos da época chegou tarde, e chegou a Moçâmedes sob a
pressão dos imperativos militares e não tanto pelas necessidades
económicas que se faziam sentir desde a chegada ali, em 1849 dos colonos luso brasileiros vindos de Pernambuco, que entregues à sua sorte lutavam pela sobrevivência e, não viam, apesar dos esforços, condições para progredir.
A ideia de um Caminho de Ferro para Moçâmedes começou a aflorar, mas
só veio a concretizar-se em 1905. Desde a Conferência de Berlim (1884-5), com a "partilha da África" pelas potências europeias industrializadas, o direito histórico deixou de ter qualquer valor e passou a ser imposta a
ocupação efectiva das colónias, cujo interior era ainda desconhecido. Na verdade o velhinho Portugal andava mais preocupado com a Regeneração, após meio século das mais diversas lutas, guerras. conflitos, oposições que tornaram o país ingovernável até 1851. Na segunda metade do século xix a industrialização europeia volta-se para Africa, fonte de matérias primas, mão de obra disponível, e mercados consumidores, e Portugal teve que se apressar. Foi entáo que em 1875, à semelhança de outras congéneres europeias, intelectuais e políticos portugueses fundam a sociedade de Geografia de Lisboa, e logo a seguir começam as expedições as expedições de Serpa Pinto e Capelo e Ivens, e em 1884.5 Portugal é convidado a participar na Conferência de Berlim, onde reuniram várias potèncias europeias interessadas em estabelecer as regras para a chamada "Partilha da África", e enquanto decorria a Conferência desembarca em Moçâmedes um 1º grupo de colonos da Ilha da Madeira, em 1884 e um 2´em 1885, para se estabelecerem nas terras altas da Huíla, onde há uns anos atrás fora autorizada fixação de um grupo de famílias boeres, fugidas do Transvaal. Segundo as determinações saídas da célebre Conferência, Portugal obrigava.se a ocupar com famílias portugueses aqueles trritórios sobre os quais reivindicava direitos históricos que deixavam de ter qualquer valor, Aqueles dois 2 contingentes de famílias de madeirenses iam iniciar o povoamento branco daquelas terras, próximas da zona de fronteira sul ainda por demarcar, cobiçadas por potências estrangeiras industrializadas, sobretudo alemães, num tempo em que a pressão estrangeira e os levantes populares fizeram de Moçâmedes o porto de desembarque de soldados,
armas e munições destinados a essas operações. O caminho de ferro foi
lançado em 1905, mas paralisado enquanto decorria a guerra de 1914-18, só viria a subir a Chela em 1923. Até aí foram sempre
precárias as deslocações para o interior praticamente desconhecido, situação que estrangulava a
economia do distrito, impossibilitava as trocas e não deixava Angola progredir. A Angola profunda manteve.se secularmente desconhecida para os Portugueses, que não tinham qualquer interferência no viver dos autóctones entregues à sua organização tribal. A causa deste atraso ficara a dever.se ao secular tráfico de escravos que se desenrolou entre as colónias de África subsaariana e o Brasil e Américas. Este período foi de completa recessão e houve colonos que desde há umas décadas se encontravam fixados na regiáo de Moçâmedes, fugidos do Brasil em 1849 e 1950 que
retornaram à Metrópole.
Quanto ao transporte de mercadorias (lenha, de produtos originários das fazendas agrícolas, etc.)estes eram efectuados em carros e as carroças traccionadas por bois, uma vez que os primeiros muares, em número de 5, só chegaram a Mossamedes procedentes do Rio de Janeiro, mais tarde. Em 1854, havia na vila apenas10 carros de bois, subindo para 61 viaturas em 1859. Os bois de tracção também aumentaram de forma notória: 63 animais em 1854, contra 378 em 1859! O número de muares e de cavalos, no Distrito, foi praticamente irrelevante, apenas atingindo as 5 unidades por espécie no final do decénio. Em compensação, durante o último triénio do século XIX, os asininos progrediram, de forma equilibrada e gradual, cifrando-se em 19 exemplares, no ano de 1859. Em princípio, todos estes animais teriam sido importados, à excepção dos bois de carro, que eram seleccionados e adquiridos a partir dos rebanhos regionais.
MariaNJardim Direitos reservados
(1) Próprios para caravanas, eram usados pelos militares para o
transporte de armas e munições rumo à fronteira sul de Angola, por isso
certos exploradores viajaram neles, como Capelo, Ivens e Serpa Pinto,
etc. Quando os caminhos terminavam, por vezes a caravana parava durante
meses, para abrir uma estrada, conforme vem referido por Serpa Pinto, em
"Como eu Atravessei a África":
(2) "Carregadores" eram povos
exclusivamente dedicados ao transporte de mercadorias, de entre os quais
se evidenciavam os bangalas nos sertões de Luanda, os bienos e os
bailundos nos sertões de Benguela e os mondombes, em Moçâmedes. Eles
monopolizaram os transportes pelas vias comerciais que cruzavam as suas
terras em detrimento de quaisquer outras comitivas. Eles impunham-se
como únicos intermediários entre o interior e a costa, não deixando
espaço para a concorrência.
(3) Entre 1907/1910, governava em
Angola Paiva Couceiro, suficientemente intransigente e pragmático para
conseguir libertar-se das torrentes emanadas do Terreiro do Paço, e com
experiência mais que suficiente para saber que dominar o território
implicava ocupar fronteiras, obrigar as autoridades gentílicas
insubmissas a submeterem-se, proporcionar a estabilidade necessária para
que as caravanas de longo curso pudessem circular, e concretizar o
pagamento do imposto de cubata.Como governador geral, deu prioridade à
abertura de rotas comerciais para o interior tanto em rodovias, (algumas
simples picadas) deu início aos troços de caminhos-de-ferro de
Moçâmedes, de entre outroa, mas como foi referido no texto só em 1923
foi possível chegar a Sá da Bandeira. Entre 1914-18 as fábricas
europeias estiveram ao serviço da guerra, Portugal endividou-se para
estar ao lado dos aliados, e tê-los a seu lado se a Alemanha vencesse a
guerra, e no poder de então a l republica (1910-28) que atravessando uma
conjuntura difícil, pouco mais pôde fazer nesta época pelas colónias.
Legenda da Gravura exposta: Colono de Mossâmedes montado num boi-cavalo.